quarta-feira, 29 de março de 2017

11 - O MEU RIMANCEIRO * Povo sou!...



(QUE VIVA O CORDEL!)








Eu olho e mal acredito

no filme que estou a ver…

Nem sei que dizer… hesito…

Melhor não me intrometer.



Um anónimo qualquer

limita-se só a ver…

Se ousar mais, o que disser

que audiência pode ter?



Falar só por desfastio

ou p’ra não ficar calado,

para mim, é desafio

à partida recusado.



Manda o são comedimento

nunca se ir a baptizado,

a festa ou a casamento

se não se for convidado…



É do povo esta sentença

e eu sou povo --- povo sou!

Por isso, peço licença

para ficar onde estou.





José-Augusto de Carvalho
Alentejo, 29 de Março de 2017.

terça-feira, 28 de março de 2017

11 - O MEU RIMANCEIRO * O sobreiro



(QUE VIVA O CORDEL!)





Não cedo porque não quero.

Vem do berço, e assim mantenho,

este princípio severo

de te dizer ao que venho.



Sou assim como o sobreiro

destas terras transtaganas:

por mais que sejas matreiro,

o meu tronco não abanas.



Sou produto deste chão,

as intempéries aguento:

do frio ao vento suão

e aos vorazes que sustento.



Sem cobrar nada a ninguém,

minha cortiça ofereço,

embora eu saiba haver quem

sempre a vende por bom preço.



E mesmo depois de morto,

serei fogo nas lareiras:

darei calor e conforto

durante noites inteiras.



Tudo dá a Natureza,

em fraterna comunhão:

se te falta o pão na mesa,

quem comeu o teu quinhão?





José-Augusto de Carvalho
Alentejo, 28 de Março de 2017.

segunda-feira, 27 de março de 2017

11 - O MEU RIMANCEIRO * No palanque



(QUE VIVA O CORDEL!)







O palanque costumeiro

pode erguer-se em qualquer praça,

donde o verbo do embusteiro

vende a quem está ou passa

o produto milagreiro.



Para os calos é pomada;

para os calvos é loção;

e para a vida azarada,

que anda sempre em contra mão,

uma cautela premiada.



No desencontro do amor,

faz a leitura da sina:

Estenda a mão, por favor!

Esta linha muito fina. 

pobre dela, está sem cor!



Não tem de que se afligir.

Eu tenho o que lhe convém.

Vai tomar este elixir,

que logo, logo, o seu bem,

nos seus braços vem cair.



No nosso amado país,

há remédio para tudo:

este mesmo que ontem fiz,

veja que até leva o mudo

a pensar o que não diz…







José-Augusto de Carvalho
Alentejo, 27 de Março de 2017.

quinta-feira, 23 de março de 2017

11 - O MEU RIMANCEIRO * Lume brando



(QUE VIVA O CORDEL!)




Agora, juntos, nós fazemos as partilhas:

pataca para ti, pataca para mim.

Nem o Ali Baba soube de Ben Saharín, (1)

para poder sonhar com tantas maravilhas!



Sem grutas no deserto ou senhas de magia,

sem medo do sultão nem da sua justiça,

é certo que custou, mas conseguimos – chiça!

com muita inteligência e com cabeça fria!



Iremos, doravante, agir como convém:

é dar uma no cravo, outra na ferradura,

ora cedendo aqui, ora privando além,

tal qual como as marés, num rítmico vaivém.



E sem que se perceba, o sono vem chegando…

…e nós sempre mantendo assim o lume brando…





José-Augusto de Carvalho
Alentejo, 23 de Março de 2017.
*
1- Ben Saharín / Lugar dos feiticeiros

11 - O MEU RIMANCEIRO * O farsante


(QUE VIVA O CORDEL!)






O pecado original

é quereres instaurado

por tempo indeterminado

o tempo do Carnaval,

para andares disfarçado

e a ninguém pareça mal.



Se presunção e água benta

cada um toma as que quer,

ignorar, quando se intenta,

as limitações que houver,

será como na tormenta:

que se salve quem puder!



De enganos e de artifícios 

não se vive a vida inteira!

E pedir os bons ofícios

à honrada gente ordeira

é procurar benefícios

que absolvam a maroteira.





José-Augusto de Carvalho
Alentejo, 23 de Março de 2017.

quarta-feira, 22 de março de 2017

11 - O MEU RIMANCEIRO * O testemunho



(QUE VIVA O CORDEL!)







Vinha descendo a lavada

escadaria de pedra

onde, sem ser semeada,

qualquer faz de conta medra.



Media a sua importância,

seja importante o que for,

supondo que a circunstância

faz honesto o malfeitor.



Olhava e tudo o que via,

do topo da escadaria,

que era seu já o supunha…



Porque é pecado a cobiça,

conta comigo a Justiça:

do que vi sou testemunha…





José-Augusto de Carvalho
Alentejo 22 de Março de 2017.

11 - O MEU RIMANCEIRO * O embusteiro



(QUE VIVA O CORDEL!)





Eu não canto por cantar

nem para espantar meus males.

Eu canto para evitar

que com mentiras embales

quem andas a desgraçar.



Canto para desmontar

teu verbo até às entranhas

e aos incautos demonstrar

que artimanhas e patranhas

não terão pés para andar…



Disfarçado de cordeiro,

és o lobo predador

que, sorrindo prazenteiro,

do sol nascente ao sol pôr,

dizima o rebanho inteiro.



Sou velho! Muito vivi!

A mim não me enganas tu!

Por isso é que eu grito aqui:

Olhem bem que o rei vai nu,

vejam bem o que eu já vi!





José-Augusto de Carvalho
Alentejo, 22 de Março de 2017.

sábado, 18 de março de 2017

11 - O MEU RIMANCEIRO * Advertência



QUE VIVA O CORDEL! 







Quem és tu que não conheço 

e me dizes conhecer-me? 

Eu sou e aqui permaneço 

neste dever de dever-me. 



Conheceste-me, talvez, 

no princípio da jornada, 

quando o tempo da nudez 

era sonho e madrugada. 



Ou quando o tempo da usura 

o verbo me retraía 

e a treva da noite escura 

os meus passos protegia. 



Ou quando as banalidades 

se exibiram sem decoro, 

numa feira de vaidades 

de histeria e desaforo. 



Eu sou, no alor que persiste, 

só mais um que, nesta estrada, 

não se cansa nem desiste 

de cumprir a caminhada. 



E tu? Serás o comparsa 

que, mimético no agir, 

em cada farsa disfarça 

a tragédia de trair? 






Viana*Évora*Portugal 
8 de Janeiro de 2000. 
José-Augusto de Carvalho

sexta-feira, 17 de março de 2017

25 - LIVRO TEMPO DE SORTILÉGIO * As minhas penas





Eu sei que não pôde ser.

Todas as penas são minhas,

luto que visto a sofrer,

diverso no entretecer

do negro das andorinhas.



Penas negras, negras penas,

por natural condição,

são diferenças apenas,

não são luto, não são penas

enlutando o coração.



Quem me dera ter as penas

que vestem as andorinhas!

Seriam penas apenas,

azeviche de melenas,

e não o luto das minhas.





José-Augusto de Carvalho
Alentejo, 18 de Março de 2017.

quinta-feira, 16 de março de 2017

11 - O MEU RIMANCEIRO * O desafio



QUE VIVA O CORDEL!





Por que tentas limitar-me

às velhas rotas de outrora?

Por que não posso encontrar-me

nas rotas que invento agora?



Velhos caminhos me apontas,

que já sei onde vão dar…

Se supões que me amedrontas,

não tenho medo de ousar.



Escrito está nas estrelas:

há sempre uma rota nova.

Só o que recusa lê-las

no desafio reprova.



Se só temos uma vida,

cumpri-la é nosso dever.

Vida que não é cumprida,

não se soube merecer.



Se o relâmpago é tão breve

e quase nos quer cegar,

é a vida longa ou breve?

Que seja enquanto durar!





José-Augusto de Carvalho
Alentejo, 17 de Março de 2017.

quarta-feira, 15 de março de 2017

03 - ESTA LIRA DE MIM!... * Aguarela da Vida







Nenhum rouxinol cantou 

e era noite de luar. 

No silêncio que pesou, 

só um mocho que agoirou 

errâncias de mal andar… 



Vem rompendo agora o dia. 

Uma brisa sopra branda. 

Já há muito a cotovia, 

em voos de rebeldia, 

p’los ares lavados anda. 



A Leste, o céu ruboriza. 

É o sol, que sonolento, 

devagarinho mal pisa, 

em caminhada precisa, 

o aclive do firmamento. 



Soam passos bem ritmados. 

É um jumento novinho 

de passos alvoroçados 

como se fossem bailados 

na quietude do caminho. 



Atrás dele, vem ligeira 

uma moça camponesa, 

rosa ainda na roseira, 

olhos negros, tez trigueira, 

hino silvestre à Beleza. 



Mais além, a passarada 

descuidada já chilreia, 

ensaiando a revoada, 

na alegria deslumbrada 

que, terno, o sol encandeia. 



Ai, que linda esta aguarela 

que tantos recusam ver! 

Quando a vida se revela 

e ninguém quer dar por ela, 

que sentido tem viver? 





José-Augusto de Carvalho 
Alentejo, 15 de Março de 2017.

quarta-feira, 8 de março de 2017

13 - NA PALAVRA É QUE VOU... * Que difícil é...!


Às vezes, sinto uma vontade danada de gritar: Que difícil é confiar!

Tenho a minha experiência pessoal; e, naturalmente, cada pessoa terá a sua experiência pessoal, que partilha ou guarda para si. Sei muito bem que é doloroso remexer em infortúnios e ou frustrações. Concedo que pode ser preferível calar e tentar esquecer. Afinal, é bem certo que crescemos e vamos aprendendo com tudo quando encontramos no caminho. Não raro ouvimos esta expressão metafórica: eu já vivi muitos carnavais ou eu já conheço isso de outros carnavais. E desta situação partirá o afastamento ou o alheamento de muitas pessoas no âmbito familiar, no âmbito social restrito ou no âmbito social mais alargado. Há feridas que doem e demoram a sarar; e depois de saradas, a cicatriz fica para sempre como um velho marco assinalando que em tempos houve aqui algo que correu mal.

O grande Poeta Miguel Torga, no seu poema De profundis, regista superiormente, ainda que noutro contexto, esta ferida de que venho falando:

Eu, esta ovelha ranhosa 
que remói silenciosa
a lembrança dolorosa
do pastor que lhe bateu… 


Esta citação que me permito fazer remete-me para esta evidência: perdoar um agravo não significa esquecer esse mesmo agravo. E tanto assim será que sabiamente o Povo declara que quem não se sente não é filho de boa gente.

Ninguém duvida de que há valores a respeitar e que a dignidade de cada pessoa não pode nem deve ser menosprezada ou agredida.

Evidentemente que além da citação e do aforismo, a Declaração Universal dos Direitos do Homem (ONU) e a Constituição da República Portuguesa são claras no respeito devido ao ser humano.

Infelizmente, são demasiadas as pessoas que se auto-excluíram. E a pergunta que inevitavelmente se coloca é esta: que benefícios trazem essas exclusões? Ou estoutra: quem beneficia com estas exclusões?

Neste tempo de incertezas, de desencantos, de inconformismos mudos deveremos ou não ponderar um pouco no que somos e no que queremos ser enquanto espécie gregária?

Aqui fica.


José-Augusto de Carvalho
Alentejo, 8 de Março de 2017.

quinta-feira, 2 de março de 2017

11 - O MEU RIMANCEIRO * O vazio



(QUE VIVA O CORDEL!)






Se eu soubesse escrever um poema,

um poema de amor e louvor,

cantaria a beleza suprema

deste sol ao nascer e ao sol-pôr.



Cantaria o vermelho da aurora,

que de enleios o céu ruboriza,

e o sangrar do sol-pôr que precisa

o negrume que já não demora.



Cantaria depois as estrelas

que pontilham o longe infinito

neste sonho infantil de colhê-lhas

na pureza sagrada de um rito.



Cantaria noite alta o luar

num absurdo e falaz fingimento

de esperar que virias sarar

as feridas do meu sofrimento.



Mas eu sei que não vens nunca mais.

Se foi Deus que te trouxe e levou,

de que servem agora os sinais

no vazio de nós que restou?





José-Augusto de Carvalho
Alentejo, 2 de Março de 2017.