domingo, 28 de janeiro de 2018

11 - O MEU RIMANCEIRO, * Admoestação


O MEU RIMANCEIRO
.

Admoestação







Dói-me este tempo parado.

Caminhos sem caminheiros…

Que relógio abandonado

sem ter corda nem ponteiros!...



No movimento aparente,

desde a manhã ao sol pôr,

tece o sol incandescente

um manto de luz e cor.



As memórias soterradas

sangram nas papoilas rubras

que sonham desesperadas

o dia em que as redescubras.



A sono solto dormindo,

teimas em não dar por nada.

Nem sonhas o sonho lindo

que há em cada madrugada.



Nas noites de estio ardente,

cantam grilos ao luar

na sinfonia estridente

que em vão te quer despertar…



Mas como um justo tu dormes,

como se fossem tranquilos

estes escombros disformes

que desesperam os grilos.



O que é dos outros cobiças,

numa inveja envergonhada…

e, alheio ao que desperdiças,

acabas por não ter nada.



Tens as nozes do rifão,

p’ra parti-las não tens dentes…

Se és assim por condição,

assume-a e não te lamentes!





José-Augusto de Carvalho

Alentejo, 28 de Janeiro de 2018.

quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

13 - NA PALAVRA É QUE VOU..., * O velho, o rapaz e a Vida


(NA PALAVRA É QUE VOU…)

*
O velho, o rapaz e a Vida


--- Quem desaparece, esquece!

José das Águias levantou os olhos do jornal e olhou interrogativamente o jovem.

--- Estou errado, Ti’Zé?

José das Águias, suspirando:

--- Ignorar é pior, rapaz! Ignorar é matar!

O jovem olhou o ancião apreensivamente e quis saber:

---Ti’Zé, qual a diferença, diga-me!

José das Águias abandonou o jornal e respondeu:

---Meu rapaz, muitos desaparecem, é um modo de dizer; é quando a Vida os chama para outros lados. Às vezes, regressam; outras vezes, não.

---A Vida, Ti’Zé? Que Vida?, quis saber o jovem.

---Ora, ora, meu rapaz, a Vida é tudo o que nos leva a fazer ou não fazer isto ou aquilo. A nossa vida mesmo e a Vida como realidade que temos. 

--- A vida como realidade que temos? --- repetiu o jovem como um eco. 

--- Não estou entendendo, Ti’Zé.

O ancião, esboçando um sorriso triste:

--- Um dia, nascemos. Este mistério da existência não sei se já está devidamente explicado por quem sabe. Aqui, acontece a nossa vida, a vida de cada um. E entramos na vida colectiva. A vida colectiva é o modo como todos estamos organizados. Cada um de nós tem o seu lugar na engrenagem. Uns fazem isto, outros fazem aquilo. E o resultado destes fazeres serve ou deve servir todos. 

O jovem escutava atentamente Ti’Zé das Águias.

O ancião continuou:

--- Quando uns partem, é sinal, quase sempre, de que as coisas não vão bem. Quem busca noutras paragens o que não encontra no torrão natal quer dizer que o país não cumpre o seu dever de dar satisfação a todos.

--- E tal sucede por que razão, Ti’Zé? --- quis saber o rapaz.

--- Tal sucede por haver dificuldades naturais ou porque quem manda, manda mal. Meu amigo, eu já vivi muito, já sofri muito. Estou cansado e prestes a dizer adeus a todos. Aqui nasci, aqui cresci, aqui aprendi com meu pai os trabalhos do campo. Aos vinte e poucos anos conheci, na Flandres, o outro lado da Vida --- a desgraça da guerra. Sabes o que é a guerra? A guerra é o Inferno, é o lugar onde os homens matam para não morrerem. E porquê? Por que motivo os homens se matam? Nem sabem. Os que governam mandam-nos matar e nós matamos outros homens que estão do outro lado com a intenção de matar-nos. Entendes isto? Ninguém entende a não ser os poderosos que ambicionam tirar ou tiram mesmo benefício da matança.

José das Águias calou-se. Estava visivelmente acabrunhado.

O rapaz, pensativo, olhava a lonjura da planície através da janela aberta da venda do Jerónimo.

Decorridos alguns minutos de silêncio, Jerónimo pediu:

--- Ti’Zé, conte ao rapaz aquela conversa que teve com o médico quando ficou ferido lá na Flandres, lembra-se?

José das Águias olhou o amigo e suspirou:

--- Ah, Jerónimo, ao tempo que isso foi! E sempre o que o médico me disse me acompanha... Vamos lá, então: enquanto me tratava, o médico perguntou-me se eu sabia por que estava na frente, a combater os alemães. Eu não sabia bem o motivo e disse que tinha sido mobilizado para a guerra. Aí ele me disse que eu era carne para canhão e que todas estas coisas sucediam desde que um homem, não sei onde nem quando, vedou um grande terreno e avisou todos os outros: «Este terreno é meu».

--- Isso mesmo, Ti’Zé! Essa dá que pensar! --- exclamou Jerónimo.

O rapaz estava confuso e pediu que Ti’Zé explicasse a história do terreno.

--- Meu rapaz, o médico dizia que naquele tempo as terras eram de todos, não era como é agora que uns poucos têm herdades e mais herdades e outros nem um quintal têm. E por via disso, vivem no bem-bom, enquanto nós nem sabemos o que nos reserva o dia de amanhã.

Jerónimo atalhou:

--- Diga mais, Ti’Zé!

--- O ancião meneou a cabeça e advertiu:

--- Estas coisas têm de ser entendidas. Vivemos tempos difíceis também para a palavra. Quem manda tem isto na mão e quem sustem o Poder são estes mesmos donos das terras e outros poderosos. O médico tinha razão: quem tem oprime quem não tem! Eu já não verei, porque estou com os pés para cova, mas os novos terão de dar uma volta séria a esta desgraça.

O rapaz quis saber:

--- E como se dá essa volta a isto?

--- O povo tem de unir-se, tirar esta gente que manda e pôr lá outra gente. Gente que sabe o que é penar e que por isso mesmo tem de distribuir por todos, na mesma e justa medida, os deveres e os direitos. Enquanto isto não acontecer, a desgraça que vivemos irá continuar, sempre!

--- Sempre!, exclamou o rapaz.

José das Águias continuou:

--- Depois da I Grande Guerra, vivemos tempos danados, com muito luto e muita miséria. E também com muita inquietação nos meios políticos e militares. Depois, veio o 28 de Maio de 1926 e a Ditadura Militar; depois veio o Estado Novo e para ficar até hoje; depois veio a tragédia que foi a dita Guerra Civil de Espanha; depois veio o horror da II Guerra Mundial; agora vivemos a Guerra de África… Quando será que se cumpre a fraternidade e o respeito pela vida e pela dignidade da vida?

A interrogação de José das Águias pairava como um pesadelo. Só o tilintar dos copos que Jerónimo lavava conseguia quebrar o silêncio pesado.

Lá fora, a planície assistia melancolicamente ao êxodo dos deserdados, “a salto”…


José-Augusto de Carvalho
Alentejo, 11 de Janeiro de 2018.

sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

13 - NA PALAVRA É QUE VOU..., * A pressa


O Flávio passou agora mesmo por mim. Iluminou a face com um sorriso e lá foi pedalando. Já nem se apercebeu do meu aceno que era um cumprimento e um adeus. Esta gente anda sempre com pressa. Não sei se é a Vida que apressa esta gente, se é esta gente que apressa a Vida. Num contraponto indiferente, o dia continua a ter 24 horas. E tanto quanto posso observar, a natureza mantém o mesmo ritmo. A natureza onde os manobrismos humanos (ainda?) não interferem para acelerar, retardar, alterar, modificar o seu ancestral modo de ser e estar.

Lá mais à frente, a estrada se cruza com um ribeiro. O Flávio já deve ter passado a ponte. E quero crer que, com a pressa, nem olhou o leito deste pequeno curso de água.

É, com certeza, um ribeiro igual a tantos outros que serpenteiam a planura. Eu gosto muito de arroios, de ribeiros e ribeiras, de rios e de mar. É o fascínio da água. Este meu fascínio me leva a ficar horas e horas olhando este ou aquele curso de água, a tentar imaginar percursos evadidos, a criar exaltadas ousadias, a recusar destinos parados de prostração e renúncias. Ora foi num dia que nem sei precisar que vi estupefacto, neste mesmo ribeiro, uma represa canhestramente erguida. Estupefacto porque a represa não tinha a finalidade transitória de aproveitar água para rega. Olhando mais atentamente, percebi: o ribeiro, naquela área, atravessa uma propriedade rústica e a represa nada mais é do que um passadiço para um tractor agrícola. Com certeza, o passadiço poderia ter usado manilhas na estrutura para deixar a água livremente correr. Mas o autor do passadiço não pensou nisso ou não quis pensar. E em nome do utilitarismo estreito e de um inaplicável direito de propriedade, cortou uma linha de água que é um bem público.

E estas coisas e tantas outras existem e persistem anónimas por vontade de quem não vê, de quem não quer ver…

Eu sei, é a pressa… Mas serão seguramente os apressados da Vida, serão os distraídos da Vida, serão os indiferentes da Vida os primeiros a apontar o indicador acusador aos outros, aos tais outros que tinham o dever de ter visto e não viram; que tinham o dever de ter previsto e não previram; que tinham o dever de ter agido e não agiram…

O Flávio passará por aqui, no regresso, pela tardinha. Hoje já não o verei, está arrefecendo e eu tenho de resguardar a minha anciania.



José-Augusto de Carvalho
Alentejo, 5 de Janeiro de 2018.