sexta-feira, 29 de maio de 2020

25 - LIVRO TEMPO DE SORTILÉGIO * Luís Vaz de Camões


LIVRO "TEMPO DE SORTILÉGIO"
.

IN MEMORIAM * Luís Vaz de Camões





Não é sonho, é inquietação.

Quando intuíste o que fomos, tu nos descobriste.

E quando desmascaraste a cobiça e a vã glória

que havia de perder-nos…

e quando lamentaste esta apagada e vil tristeza

a que nos condenámos

e quase nos matava em Alcácer Kibir,

tu viste que os perigos e as tormentas

medravam aqui e não no velho cabo

que deu a fama e a morte ao nosso Bartolomeu.

A pátria não morreu contigo,

mas nós percebemos,

nesse dia,

que chegara ao fim o tempo

daqueles em quem poder não teve a morte.




José-Augusto de Carvalho
Alentejo, 7 de Agosto de 2019.

terça-feira, 26 de maio de 2020

13 - NA PALAVRA É QUE VOU..., * As amoras de ouro



(Uma narrativa de José-Augusto de Carvalho)

*
1ª. Parte – As amoras de ouro 


Gabriel tinha nove anos. Vivia com seus pais, os camponeses Rafael e Matilde, numa hortinha que distava da aldeia uns quinze minutos a pé.

Gabriel chegava cedo à escola. Num saco de pano a tiracolo, carregava os livros, os cadernos e a merenda. Quando fazia mau tempo, o pai levava-o, pela manhã, e ia buscá-lo, à tarde, num carro de canudo, puxado pelo Catita, um muar possante e manso, da idade de Gabriel.

Tão manso era o Catita que, durante a época escolar, Gabriel, escarranchado em seu dorso, dava bons passeios pelos campos, aos domingos; e quando estava em férias, sempre que lhe apetecia. Nos dias habitualmente bonitos das férias grandes, passeava bastante.

Ora, num desses passeios, Gabriel viveu uma aventura como nunca tivera outra. Numa linda tarde de julho, foi à ribeira ver os patos bravos. Chegado lá, deixou o Catita à vontade, a pastar no restolho, e foi sentar-se na margem. Os patos nadavam, felizes, na corrente vagarosa.

Defronte, na outra margem, havia um silvado. Olhando, por acaso, viu um lenço branco acenando. Admirado, certificou-se de que estava só. Por isso, o aceno só poderia ser para ele. Quem estaria acenando de dentro do silvado? Acenou também. Mas estava curioso. Quem seria? Não pôde descobrir porque o lenço desapareceu.

A tarde caía e Gabriel regressou à hortinha. Catita troteava, contente. Quando entrou em casa, a mãe estava na cozinha, ocupada com o jantar. O pai, no alpendre ao lado, aparava canas para amparar os tomateiros.

Sentou-se num mocho, frente ao pai, e ficou observando-o, calado. Rafael olhou o filho e suspeitou: há coisa com o menino. Sem levantar os olhos da cana que aparava, perguntou:

-- Que tal de passeio, meu filho?

Gabriel baixou os olhos e respondeu:

--- Foi assim-assim, pai.

O hortelão estranhou a resposta e quis saber o porquê daquele assim-assim:

--- Como assim, meu filho? Que resposta estranha me dás.

A criança sentiu-se em falta e decidiu contar o que se passara naquela tarde.

Rafael olhou o filho nos olhos e quis saber:

-- Tens certeza, meu filho, de que viste um lenço acenando do silvado?

Gabriel disse que sim com a cabeça e ficou olhando o pai como que pedindo ajuda.

Pensativo, Rafael semicerrou os olhos, por segundos. Que história o seu menino lhe contara! Depois, determinou:

-- Meu filho, amanhã, iremos ver o que se passa.

Gabriel sorriu, satisfeito por seu pai estar disposto a ajudá-lo a descobrir aquele mistério.

Matilde chamou-os para jantar. Comeram um gaspacho, acompanhado de peixe da ribeira, acabado de fritar. Era sempre uma refeição deliciosa e refrescante, nos quentes dias de verão.

Terminado a refeição, Gabriel foi dar comida ao Mercúrio, um belo cão rafeiro alentejano, e à Estrela, uma cadelinha que mantinha, a distância, os coelhos bravos que viviam nos valados, sempre à espreita de uma oportunidade para irem comer as verduras da hortinha.

Enquanto Matilde arrumava a cozinha, Rafael foi regar as hortaliças e as árvores. Durante o tempo quente, gostava da rega ao cair do dia, para que a terra ficasse, até à manhã seguinte, com aquela fresquidão de que as plantas tanto gostam. Depois, foi ver o galinheiro, o Catita e as duas ovelhas.

Tudo estava em ordem. Terminadas as tarefas, todos foram dormir.

Ainda mal clareava e já o galo dava os bons dias à manhã que vinha chegando num có-có-ró-có-có estridente e poderoso.

Matilde chegou à cozinha e começou a preparar o pequeno-almoço. Rafael foi soltar as galinhas e as ovelhas. Gabriel chegou e sentou-se a tomar a habitual tigela de leite com farinha de fava. Seus pais beberam café de mistura e comeram pão e queijo. Finda a refeição matinal, Matilde foi ocupar-se dos trabalhos domésticos e Rafael foi buscar o Catita. Quando Gabriel saiu de casa, já o carro de canudo estava pronto para seguirem. Partiram. Da hortinha à ribeira, Catita gastaria um quarto de hora naquele trote alegre que dava voluntariamente à marcha. Na manhã ainda fresca, a passarada ensaiava livre e festivamente os seus voos e cantava. A natureza é muita bela, assim haja olhos para a apreciarem. Rafael e Gabriel ali haviam nascido, mas, sempre, quando o tempo estava bom, cada manhã era única na sua beleza.

Chegaram à ribeira. A água corria lenta. Os patos bravos, uns, no restolho, procuravam comida, outros nadavam. Rafael desengatou o Catita e deixou-o solto, a pastar. Depois, foi ter com o filho que se sentara no chão, na margem da ribeira, olhando o silvado à sua frente, na outra margem. Distinguiam-se as amoras, ainda verdes. O mês de julho ia adiantado nos dias. No final de agosto, algumas estariam maduras. As que despontavam no topo do silvado seriam para os pássaros. Ninguém lá chegaria. As que estavam do lado da água, não seria problema colhê-las. Ali, a ribeira era rasa. Mesmo agora, via-se o fundo, lisinho. Decorrido que fosse pouco mais de um mês, o caudal diminuiria. Talvez, ponderava Gabriel, a água não fosse acima da sua cintura.

Rafael sentou-se ao lado do filho. Olhou a água e os patos, depois fixou os olhos no silvado. Tentava descobrir qualquer coisa estranha, mas nada viu.

Gabriel, que observava o pai pelo canto do olho, lamentou:

-- Não há nem sinal do lenço branco, mas eu vi, eu juro que vi o lenço branco acenando para mim, pai!

Rafael sossegou-o:

-- Claro, Gabriel! Claro que viste! Tu não és mentiroso e nem estarias a sonhar...

E continuou:

-- Além do mais, meu filho, mentir é muito feio, e sempre se deve dizer a verdade. Mas sonhar é próprio das pessoas, não é assim?

Gabriel corrigiu, com um sorriso:

-- Das pessoas e dos cães, pai. O Mercúrio sonha muito. Às vezes, rosna e ladra baixinho, enquanto dorme. Nunca assistiu, pai?

Rafael, sorrindo também:

-- Já, sim, filho. Quando disse que sonhar era próprio das pessoas, era uma maneira de falar, pois os animais também sonham. Mas eu falava no sonhar acordado, entendes?

-- Que é sonhar acordado, pai?

O hortelão voltou a sorrir e esclareceu:

-- Sonhar acordado é a gente dar asas ao pensamento e criar, na cabeça, uma realidade muito nossa e que os outros não veem. Entendes o que quero dizer?

Gabriel acenou que sim com a cabeça. E confidenciou:

-- É, pai, o meu professor pergunta-me, às vezes, se eu estou na aula ou na horta... É que me distraio, e o meu pensamento ganha asas... Mas ele não se zanga, só me diz que, se eu estiver com atenção, aprendo mais e mais depressa.

--Pois, meu filho - concordou o hortelão - o professor tem toda a razão. Tens de aprender, para seres um homem.

Gabriel amava e admirava muito seu pai. Rafael era um homem bom, trabalhador e de uma dedicação sem limites à família. Era um hortelão excelente e criativo, muito respeitado na vizinhança e na aldeia.

Entretanto, o tempo passava. O silvado lá estava, defronte, na outra margem. Rafael, olhando o filho:

-- Vou buscar o Catita, teremos de regressar. Outra vez, aqui voltaremos. Hoje, não tivemos a sorte de ver o lenço branco.

Gabriel ficou sozinho, olhando ora os patos, ora o silvado. De repente, viu o lenço branco acenando. Sentiu o coração bater mais depressa no peito. E, num impulso, olhou para trás e gritou:

-- Pai, o lenço!

O hortelão deveria estar distante uns trinta metros dali. Caminhava, com o Catita à arreata, em direção ao carro de canudo. Aproximou-se do freixo, sob cuja copa estava Gabriel e o carro.

-- Viste o lenço, filho?

O menino estava triste.

-- Vi, meu pai, mas, quando gritei, o lenço desapareceu.

Rafael animou o filho:

-- Talvez o lenço não queira que eu o veja. Um dia destes, amanhã ou depois, virás aqui só com o Catita. Talvez consigas entender o que se passa.

Dito isso, atrelou o muar e puseram-se a caminho, de regresso à hortinha.

Quando chegaram, Matilde já enxaguava a roupa que lavara no tanque de rega. Estrela e Mercúrio vieram dar-lhes as boas-vindas.

Gabriel saltou do carro e foi ter com a mãe.

-- Minha mãe, eu ajudo a estender a roupa, sim?

Matilde acariciou-lhe a cabeça com a mão molhada. O menino pegou uma peça de roupa e foi estendê-la na corda que Rafael esticara entre os troncos de duas nogueiras. Regressou a buscar outra peça e assim sucessivamente, até estender a roupa toda.

Rafael desengatara o Catita e levara-o para o pequeno estábulo. O carro de canudo, como sempre, no verão, ficou à sombra de uma nogueira, pertinho da nora.

O sino da Igreja da aldeia bateu as doze badaladas do meio-dia. Matilde, que já regressara à cozinha, chamou-os para o almoço. Rafael interrompeu a sua faina e foi para casa. Gabriel, que estava junto do tanque, com Mercúrio, seguiu o pai.

Enquanto almoçavam, o hortelão contou à mulher a história do silvado, na ribeira. Ela sorriu e gracejou:

-- Ora, ora, Rafael, coisas de rapazes...

Gabriel, corando, defendeu-se:

-- Coisas de rapazes, não, minha mãe! Eu vi o lenço acenando, juro!

Continuando a sorrir, Matilde respondeu:

-- É claro, meu filho. Tu já estás quase um homenzinho, não irias mentir. Amanhã irás à ribeira, sozinho. Teu pai tem razão, o lenço só quer ser visto por ti.

Depois de comer, Gabriel foi dormir a sestinha, sua mãe ficou arrumando a cozinha e seu pai foi para o alpendre preparar as sementes que seriam lançadas à terra, depois das primeiras águas que cairiam lá para finais de setembro, princípios de outubro.

Lá fora, o silêncio era apenas cortado pelo cantar das cigarras. À hora do calor, só por dever se andava à torreira do sol...

Gabriel acordou quase às seis horas da tarde. Foi espreitar o sol. Ainda ia alto, mas já tombava para o ocidente. Seria uma boa oportunidade para dar um mergulho no tanque, pensou.

O menino já sabia que o Sol sempre «nasce» a oriente e se «põe» a ocidente. E já sabia também que o vento suão era ruim, porque queimava as plantas. Por isso seu pai tinha anualmente aquele trabalho de aparar as canas que, depois, cravava no chão, umas a seguir às outras, ligadas com ráfia, e a que chamava uma paliçada.

Matilde, na cozinha, costurava. A Estrela, deitada a seus pés, dormitava. Gabriel entrou, beijou a mãe e segredou:

-- Mãe, vou dar uns mergulhos no tanque.

-- Vai, meu filho! Está calor, ficarás fresquinho. Leva uma toalha para te enxugares.

O menino saiu de casa a correr. Mercúrio estava deitado à sombra duma nogueira, a uns passos do tanque, observando-o.

Gabriel já sabia nadar. Entrou na água, de mergulho, e demorou-se no tanque, divertido e refrescando-se. Não havia perigo, o tanque, quase cheio, teria, no máximo, um metro de fundura. Na ribeira, por recomendação do pai, agia cautelosamente: apenas entrava onde tinha pé, quando a corrente era vagarosa ou inexistente e a água transparente lhe permitia ver o fundo liso.

Gabriel reconhecia a razão de seu pai em todas as recomendações, porque, na aldeia, eram conhecidas e faladas as consequências das imprevidências de meninos e adultos. Seu pai sempre lhe explicava os porquês das suas recomendações. Nunca dizia não porque não, nem sim porque sim. Explicava, ensinava, era um amigo sempre disponível para ouvir, para ajudar, para aconselhar.

Quando o sino deu as sete badaladas, Matilde veio à porta da cozinha, que dava para o terreiro, e chamou o filho:

-- Meu filho, sai do banho, são horas de jantar!

O hortelão, ouvindo a mulher, deu por finda a tarde de trabalho no alpendre e entrou em casa. Gabriel, logo a seguir, entrou, correndo, de calções. E já à mesa, pediu:

-- Pai, vamos à ribeira depois do jantar?

Rafael estranhou e quis saber:

-- Meu filho, não ficou combinado ires lá amanhã de manhã?

Gabriel justificou:

-- Pai, ainda vai haver muita luz de dia e, se se fizer tarde, teremos a lua...

Rafael refletiu e respondeu:

-- É verdade, hoje há lua cheia. Está bem, meu filho. Antes, passaremos pela horta do senhor Amílcar, para eu lhe pedir que dê uma olhadela pela nossa. Quem sabe ele consente que sua filha venha fazer companhia a tua mãe até regressarmos.

Terminado o jantar, saíram. Levavam o Catita à arreata. O vizinho Amílcar atendeu ao pedido de olhar pela casa e disse à filha:

-- Laurinda, vai fazer companhia à vizinha Matilde até que o senhor Rafael e o Gabriel regressem. A tua mãe arrumará a cozinha.

Laurinda era uma rapariga dos seus dezassete ou dezoito anos, sempre sorridente e muito bonita. Tinha grande admiração e amizade pela vizinha Matilde, por isso foi de pronto.

Rafael agradeceu ao vizinho e partiu com o filho.

Seguiam por uma azinhaga, daí irem a par. Catita, à arreata, caminhava um pouco atrás.

Percorridos uns duzentos metros, o hortelão perguntou:

-- Meu filho, estavas tão impaciente que não pudeste esperar por amanhã?

Gabriel sorriu.

Rafael ficou intrigado com o sorriso do filho e quis saber:

-- É segredo?

O menino, sempre a sorrir, respondeu:

-- Não é, não. Eu não tenho segredos para o meu pai e para a minha mãe.

Rafael sorriu também, um sorriso de grande satisfação por confirmar que o seu querido filho lhe dava, mais uma vez, uma prova de confiança.

Gabriel disse, então, o motivo por que pediu a antecipação da ida à ribeira:

-- Meu pai, uma vez, a Laurinda disse-me que os rouxinóis cantam em grupo, nos silvados da ribeira, em noites de luar, e eu gostaria muito de ouvi-los. Pronto, como vê, não há segredo algum...

Rafael acariciou a cabeça do filho com a mão esquerda, pois, com a direita, segurava a arreata do Catita.

Já estavam perto da ribeira, e o hortelão, que se lembrava muito bem de que quem acenava só o fazia quando Gabriel estava sozinho, decidiu:

-- Eu ficarei escondido, a uns vinte ou trinta metros. Tu irás sentar-te defronte do silvado. Se fizermos assim, quem quer que te acene não me verá.

O menino entendeu a astúcia do pai e disse que sim com um aceno de cabeça. Separaram-se conforme combinado. Rafael sentou-se no chão, sob a copa de um freixo, cujo tronco o escondia da margem oposta da ribeira. Gabriel caminhou mais uns metros, até ficar defronte do silvado. Sentou-se e ficou olhando os patos que nadavam. A água, transparente, ganhava variados tons provocados pelos raios solares. Catita ficara solto, como sempre, no restolho. Feliz, a passarada ensaiava as suas acrobacias aéreas. Ouvia-se o cantar dos grilos. O sol despedia-se, escondendo-se na distância.

Gabriel estava ansioso. Será que o lenço branco apareceria, acenando? Será que os rouxinóis viriam cantar em grupo?

A uns vinte e tal, trinta metros, Rafael observava, pacientemente. E também se interrogava: aquela história do lenço era intrigante. Mas teria de atender a vontade do filho. E mais, teria de estar com ele, para protegê-lo.

Esmoreciam as partículas da luz solar que garantem o período que medeia entre o pôr-do-sol e o anoitecer. A passarada diurna já disputava os raminhos altos dos freixos, para pernoitar.

Caída a noite, Gabriel assistiu a uma cena extraordinária: os rouxinóis chegavam, e cada um ia piando como nas orquestras, quando os músicos procuram afinar os instrumentos de sopro. Depois, calaram-se, de repente.

O menino nunca assistira a tal maravilha. Os rouxinóis ocupavam as suas posições. O concerto iria começar... Olhava, fascinado. E a sinfonia começou.

É impossível descrever a magia dos sons emitidos por uma vintena de gargantas. Apenas nos resta imaginar uma melodia talvez inacessível à criatividade humana. E o luar brincava nas águas transparentes da ribeira, dando-lhes reflexos de prata. Os patos, imóveis, ouviam extasiados, como que deixando passar a beleza do canto.

E eis que, no silvado, o lenço branco acenou. Gabriel estremeceu. A beleza da sinfonia dos rouxinóis varrera da sua mente a expectativa que tinha de ver o lenço branco acenando-lhe. Era de mais, tudo quanto desejava acontecia, e ao mesmo tempo! Sorriu, feliz. Um sorriso de espanto e de encanto. Correspondeu ao aceno, sempre sorrindo. E aconteceu o que supunha impossível: o silvado abriu uma fenda e dela saiu um barquinho. Nele, uma menina toda vestida de branco. Gabriel suspendeu a respiração. Não podia ser! Estava sonhando! Mas não estava. O barquinho vinha em sua direção. Os rouxinóis calaram-se e os patos reverenciavam a menina à sua passagem. O barquinho varou a proa exatamente a uns centímetros dos seus pés. A menina, de pé, estendeu a mão direita para ele, pedindo ajuda para descer.

Era uma menina linda, talvez da sua idade.

-- Olá, Gabriel! - Saudou-o.

-- Olá! - A voz, de tão emocionado que estava, era um murmúrio. E como sabia ela o seu nome?

-- Há muito que te esperava! Há muitos, muitos anos...

Gabriel arriscou:

-- Como sabes o meu nome? E como me esperavas há muitos anos? Nós somos ainda crianças...

A menina sorriu e disse:

-- Meu nome é Lorata, e sei o teu nome desde sempre, mensageiro...

Gabriel já não entendia nada...

-- Lorata? Que nome estranho! Nunca ouvi. E mensageiro? Que queres dizer?

Lorata esclareceu:

-- É natural que o meu nome te seja estranho. Eu venho de outro país, de um país que tem uma língua diferente da tua. Mensageiro porque o teu nome -- Gabriel -- é o que quer dizer, não sabias?

O menino corou, envergonhado. Nem imaginava que seu nome quisesse dizer alguma coisa...

E a menina continuou:

-- Trago-te um presente: sete amoras. Estão aqui neste saquinho de cetim. Comerás cinco. As duas restantes, irás guardá-las durante sete dias, numa tacinha de vidro, numa gaveta. No oitavo dia, quando fores buscá-las, terás uma surpresa. E na próxima lua cheia aqui te esperarei. Até lá, não me verás.

Dito isso, Lorata regressou ao barco e partiu. Gabriel ficou calado, com o saquinho de cetim na mão, vendo-a afastar-se. O barquinho deslizou sobre as águas de prata em direção ao silvado, que abriu a fenda para ele entrar.

Gabriel caminhou em direção ao freixo onde estava seu pai. Rafael adormecera. Acordou-o. O hortelão abriu os olhos, confuso, e exclamou:

-- Peguei no sono. Estava ouvindo os rouxinóis - uma beleza de canto - e, sem querer, adormeci.

-- Vamos, pai! No caminho lhe contarei o que sucedeu...

Rafael foi buscar o Catita. Já caminhando, pediu ao filho:

-- Bem, conta lá as novidades!

E Gabriel contou. Rafael não podia acreditar. Mas, se era fantasia, como explicar o saquinho de cetim que seu filho trazia na mão? Nunca na vida tivera um enigma assim!

Chegaram à hortinha já depois da meia-noite. Mercúrio saudou-os, alegremente. Na cozinha, Matilde e Laurinda conversavam. Quiseram saber notícias do passeio noturno. Prudentemente, Gabriel deixara o saquinho de cetim no alpendre. Contou as maravilhas do concerto dos rouxinóis. Do lenço branco, não falou à frente de Laurinda.

Depois, Rafael foi levar Laurinda a casa, e Gabriel foi buscar o saquinho de cetim.

Matilde ficou maravilhada. Era um saquinho muito, muito bonito, todo bordado com sinais estranhos entrelaçados e compondo desenhos. Gabriel pousou cinco amoras sobre a mesa da cozinha. As duas restantes, colocou-as numa tacinha de vidro e foi guardá-las, conforme Lorata lhe dissera.

Quando Rafael regressou, Gabriel contou à mãe tudo o que se passara na ribeira. Matilde ficou boquiaberta.

Gabriel decidiu que os três comessem as cinco amoras. E todos reconheceram que nunca haviam comido amoras tão boas.

Entretanto, as horas passavam. O sino da torre dava duas badaladas. Matilde exclamou, admirada:

-- Duas da madrugada! Temos de ir descansar. Amanhã, só para o Gabriel não será dia de trabalho...

E foram descansar.

Foi uma noite desigual. Gabriel sonhou com o concerto dos rouxinóis e com um passeio de barco com Lorata. Matilde, apesar do cansaço da labuta diária, ainda sonhou com o saquinho que Gabriel trouxera.

Rafael, intrigado com toda a história e mais ainda com os sinais bordados no saquinho, pensava consultar o professor do filho. Quem sabe, talvez, a chave do enigma estivesse nos sinais? Adormeceu tardíssimo.

O galo, como sempre, gritou o seu poderoso có-có-ró-có-có quando as estrelas empalideciam. Rafael acordou com o cantar do galo. Era o seu despertador habitual. Levantou-se com todo o cuidado, para não acordar a mulher. Saiu de casa. No terreiro, Mercúrio fazia a sua guarda, andando de um lado para outro. Veio ao encontro do dono, abanando a cauda. O hortelão soltou as galinhas e as ovelhas. Depois, foi ver o Catita. O muar recebeu-o com um olhar prolongado e dócil. Porque tudo estava bem com os animais, regressou a casa. Aqueceu café e comeu uma fatia de pão com queijo. Depois, foi trabalhar no alpendre. Por lá se demorou até cerca das nove horas. Voltou a casa, lavou-se e vestiu-se devidamente para ir à aldeia. Cerca das dez horas, bateu à porta do professor. O professor era um homem mais velho, quase na casa dos sessenta.

-- Bom dia, senhor Rafael! A que devo a sua visita? O nosso Gabriel está bem?

-- Bom dia, senhor professor! O Gabriel está bem, sim senhor. Desculpe incomodá-lo, mas decidi consultá-lo sobre um enigma.

-- Um enigma? Vamos entrando. Sente-se. Ora, diga-me o que há...

Rafael entrou, sentou-se e estendeu-lhe o saquinho de cetim.

-- Ora veja!

O professor pegou no saquinho de cetim, olhou-o atentamente e, intrigado, perguntou:

-- Que saquinho é este?

Rafael, cautelosamente, informou:

-- Uma menina deu esse saquinho ao meu Gabriel. O que me intriga não é o saquinho, mas os sinais bordados. Eu nunca vi nada parecido e nem a minha Matilde.

O professor, olhando de novo para o saquinho, arriscou:

-- O que está bordado no saquinho são letras entrelaçadas, letras diferentes das nossas, por isso o senhor não as identificou.

-- Letras? - Estranhou Rafael.

-- Sim, serão letras árabes, creio eu...

O hortelão coçou a cabeça, confuso, e tornou:

-- Mas a menina falava português, senhor professor... Como poderia ser árabe? Como poderia haver uma menina árabe aqui, no campo?

O professor não tinha resposta para as perguntas que lhe fazia Rafael. Por isso mesmo, respondeu, encerrando o diálogo:

-- Pois, é o que lhe posso dizer, quanto ao mais, não sei.

Rafael saiu da casa do professor ainda mais intrigado. Regressou a casa refletindo, buscando encontrar o caminho ou caminhos a seguir para desvendar aquele mistério.



Na hortinha, o tempo corria normalmente. Apenas Gabriel contava os dias, desejoso que passassem para ir ver a tacinha guardada na gaveta e que só poderia abrir findo o prazo determinado por Lorata.

Finalmente, o oitavo dia chegou. Gabriel, ansioso, saltou da cama e abriu a gaveta da cómoda. Olhou e ficou espantado. As amoras, que eram pretas, estavam, agora, amarelas. Pegou uma, cuidadosamente. E, de novo, ficou espantado. A amora era dura e mais pesada. Parecia de metal. Então, pegou a outra também e correu para a cozinha, gritando:

-- Mãe, olhe as amoras!

Matilde, na cozinha, preparava o pequeno-almoço. O hortelão, sentado à mesa onde faziam as refeições, olhava o filho, surpreendido.

-- Veja, pai! - E o menino mostrava as amoras na palma da mão.

Rafael olhou para a mulher. E ela também o olhava. Estariam pensando o mesmo? E, sem querer, ele murmurou:

-- Até parece feitiço! Se a gente não tivesse comido as outras, iria pensar coisas...

-- Também acho, Rafael... - Disse Matilde.

Gabriel, calado, olhava ora para o pai, ora para a mãe...

Rafael virou e revirou as amoras. Não havia dúvida, eram amoras de metal, um metal qualquer, amarelo. Preocupado, disse à mulher:

-- Matilde, não vamos falar disto a ninguém. Terei de ir à cidade tratar da licença da espingarda. Irei amanhã, pela manhã. Levarei as amoras. Lá saberei que metal é este.

Na manhã seguinte, Rafael atrelou o Catita ao carro de canudo e partiu. Regressou ao final da tarde. Entrou na cozinha com ar preocupado. Impaciente, Matilde quis saber notícias das amoras.

-- Então, homem? E as amoras?

Rafael contou:

-- Fui a uma ourivesaria. Mostrei as amoras. O ourives pegou nelas, curioso, dizendo não ser hábito fazerem amoras de ouro.

-- Amoras de ouro? Que dizes tu, Rafael?

-- Pois, Matilde. E mais, perguntou se eu lá fora para vendê-las. Ora, eu não desarmei e disse-lhe que apenas queria avaliá-las, para saber com o que contar em um dia que precisasse de dinheiro.

-- Isso mesmo, Rafael! Nunca se sabe o dia de amanhã. E temos este menino para criar.

-- É isso ai, sim, Matilde... -- Acudiu Rafael. E continuou:

-- Mas ninguém poderá saber da existência destas amoras de ouro, porque ninguém iria acreditar neste mistério que estamos a viver.

Gabriel, entrando na cozinha, pediu:

-- Mãe, tenho fome! O jantar demora ainda?

Matilde, sorrindo para o filho, desculpou-se:

-- Ah, meu filho, desculpa-me, mas demorámos na conversa. Vamos jantar, sim, e já. Vai lavar as mãos e senta-te à mesa.

E os dias foram passando...

segunda-feira, 18 de maio de 2020

23 - NOSTALGIA * Na Revolução dos Cravos





Lisboa, 1974.
Na Revolução dos Cravos, 
a identidade, na comunhão, 
do caminho livre e sem barreiras 
rumo ao Futuro sonhado de esperança.

17 - HARPEJOS * Paisagem



HARPEJOS~
.
.Paisagem




Do cimo de São Vicente

vejo o castelo de Beja,

quando um sol de estio ardente

ao inferno faz inveja.



Meus olhos mergulham fundo

na lonjura que me ganha.

Não há fronteiras no mundo!

Ninguém vive em terra estranha!



Nem pequenez, nem grandeza.

A dimensão verdadeira

que sopesa com firmeza

frágil mão duma ceifeira...




José-Augusto de Carvalho
8 de Março de 2006.
Viana*Évora*Portugal

sexta-feira, 15 de maio de 2020

25 - LIVRO TEMPO DE SORTILÉGIO * Em louvor da Poesia


Livro TEMPO DE SORTILÉGIO
.
Em louvor da Poesia




É quando o verso atinge a forma e ganha altura

em ritmos de manhã e de sonoridade

que o verbo se compraz em halos de ternura

e encontra para a Vida a rima em liberdade


É quando a Poesia autêntica revela

ser a raiz, a planta, a flor, a melodia

que a luz de cada dia entrando p’la janela

me serve embriagada a vida em Poesia


É quando a soluçar Eurídice me chama

das sombras do não-ser que sei que não morreu

a flor que se desfolha em versos nesta vida


É quando o coração se dilacera em chama

que sei que em todos nós ainda vive Orfeu

que nunca a Poesia em nós será perdida


*

José-Augusto de Carvalho
Alentejo, 28 de Abril de 2005.