sábado, 28 de julho de 2018

13 - NA PALAVRA É QUE VOU......* Na Linha Ferroviária do Sul


NA PALAVRA É QUE VOU...
NA LINHA FERROVIÁRIA DO SUL

 Ponte ferroviária sobre o Rio Xarrama
(Foto Internet, com a devida vénia)

1.
Todas as semanas fazia aquelas viagens nocturnas: sexta-feira à noite para baixo; domingo à noite para cima. Ia e vinha no então chamado comboio-correio. Sem pressas, este comboio parava em todas as estações e apeadeiros. Era reduzido o movimento de passageiros subindo e descendo, mas era um tanto agitado o movimento de mercadorias. Eu sempre estava atento  quando, no sentido descendente,  chegava à estação de Casa Branca: aí era a corneta anunciando a partida iminente do comboio e logo após o aviso gritado ---  partida para o Algarve! Toda a gente, respeitando a orientação Norte-Sul, dizia vou para cima ou vou para baixo.
Nas noites de luar, quando em sentido descendente, eu ficava olhando o exterior, logo à saída da Estação Ferroviária de Casa Branca. Sentia um fascínio muito grande pela ribeira de Papa Galos e pelo rio Xarrama. Daí o meu persistente desejo de ver e rever as suas águas quando o comboio os cruzava. A ribeira de Papa Galos, cujo curso vai de Ocidente para Oriente, é afluente do rio Dgebe e este é afluente do  Odiana, o meu muito amado Odiana, rio mítico onde mais tarde seria construída uma barragem que é ou será o maior lago artificial da Europa --- a Barragem de Alqueva. A Barragem de Alqueva é uma das esperanças de uma significativa área do Alentejo devido à irrigação que pode proporcionar. O Xarrama corre de Nordeste para Ocidente e é afluente do Sado, rio inteiramente transtagano, que vem da Serra da Vigia, a Sul, e faz o seu trajecto para Norte até mergulhar no Oceano na nossa perdida Setúbal. E digo nossa perdida Setúbal como cidadão transtagano. Esta linda cidade marítima foi extorquida ao Alentejo, vá lá o Diabo saber o porquê, mistério insolúvel / aberração instalada que parece ninguém incomodar, da lavra de iluminado(s) que não sei identificar --- ah, as coisas que eu não sei! --- até porque Setúbal continua capital de um distrito que inclui vários municípios transtaganos.
No sentido ascendente, quando regressava a Lisboa, sentia o mesmo fascínio pelas águas. Quando o comboio partia da estação de Viana, eu ficava esperando pelo Xarrama. Tantas saudades daquelas águas, nas quais ensaiei as primeiras braçadas da minha incipiente condição de nadador e alimentei o meu sonho irrealizado de marinheiro!  Logo a seguir à estação de Alcáçovas, lá estavam as águas da Papa Galos me esperando…

2.
Dizia-me um amigo e primo já falecido: oh, parente, tu tens uma situação mal resolvida com o Guadiana e tanto assim que insistes em chamar-lhe Odiana.
Eu olhava-o, sorrindo. Quando ele nasceu, eu tinha quase dez anos. Andei com ele ao colo. Ele sabia o muito carinho que eu tinha por ele. E pacientemente eu lhe respondia sempre o mesmo: parente, tu sabes que eu tenho uma predilecção por Espanha. Tanto assim é que, em Espanha, eu nunca me senti estrangeiro, apenas sinto estar numa terra vizinha da minha. Afinal, para cá dos Pirenéus, nós somos todos iberos ou hispanos e muitos outros de nós ainda sefarditas e/ou andalusis,  mas eu não gosto nada de imposições e submissões. Em Portugal temos várias palavras com a mesma raiz: Odiana, Odeleite, Odemira, Odivelas, etc. E diz quem sabe dessas coisas da etimologia que a palavra árabe Uad (curso de água) entrou no português como Ode e no castelhano entrou como Guad. Em rigor, o português Odiana ou o castelhano Guadiana significa Rio Ana.  E também sabemos que a palavra castelhana Guadiana entrou (à força?) no idioma português depois de 1580, data em que perdemos a independência. Ora, eu até posso entender que durante os sessenta anos de soberania espanhola tivesse ocorrido esse desmando, mas já não entendo o porquê desse desmando de soberania espanhola prosseguir e se enraizar desde que recuperámos a independência nacional, em 1640. Passaram centenas de anos e continuamos assumindo uma palavra estranha e simultaneamente desprezando e relegando para o arquivo dos arcaísmos a nossa muito nossa palavra Odiana.

3
Os anos passaram. Agora, definitivamente nas pátrias terras transtaganas, mais só e chorando as perdas inerentes à nossa condição de existência efémera, perco-me e encontro-me nas recordações. Sei que sem memória nada somos, sei-o por experiência. Igualmente sei que muita gente vai considerar saudosista este texto e outros semelhantes. Não penso assim. Textos deste género apenas fixam no papel momentos de uma existência. Momentos merecedores de respeito, de compreensão e consideração, pela meridiana razão de que a vida merece respeito, a vida em si mesma. O que fazemos da vida ou o que fazemos na vida são patamares diferentes, estes passíveis de outras leituras, de outras interpretações, de outros juízos de valor.

José-Augusto de Carvalho
28 de Julgo de 2018.
Alentejo * Portugal


quarta-feira, 25 de julho de 2018

13 - NA PALAVRA É QUE VOU... * O forasteiro



Diálogos de Café
.
O forasteiro


Entrou e sentou-se a uma mesa próxima da porta de entrada do Café. Discretamente, circunvagou o olhar, num reconhecimento rápido, e esperou ser atendido. O empregado aproximou-se e disse, como era de uso: faz favor de dizer. O homem olhou o empregado e pediu: um café e um copo de água, por favor.
Enquanto esperava, observou a rua quase sem movimento àquela hora. Eram quatro da tarde e o sol de Julho ainda ardia. Se o dia tem vinte e quatro horas, em rigor eram dezasseis horas. Não sei deveras por que dividimos o dia em manhã e tarde, mas dividimos e por isso mesmo dizemos quatro da manhã ou da madrugada e quatro da tarde. Ora pois, o Povo é quem faz a língua. O que mais importa é que esteja tudo certo e que nos entendamos.
Sentados a uma outra mesa, dois clientes comentavam a transferência de um futebolista: Dizem que o país vai mal, mas os clubes gastam milhões em contratações. E o mais estranho é que os doentes da clubite não reclamam por salários justos, mas consideram muito natural esta indecência.
Insulto, queres tu dizer, corrigiu o outro. E em contratações, em salários, em prémios…
Verdade, confirmou o primeiro. É só quando um braço de trabalho pede aumento de salário que o patrão e o ministro falam em crise e na tal concertação que nada concerta nem conserta nem harmoniza e só  provoca a divisão sindical, a tal divisão para reinar. E, no final de um arremedo de controvérsia, concluem sempre o mesmo: quando o mar bate na rocha, quem se lixa é o mexilhão.
Estavam de acordo. Difícil era não estarem. Esgotada a conversa ou por afazeres que os reclamassem, pagaram a despesa e saíram.
O empregado acercou-se e quis saber: o senhor está de passagem? Aos dias de semana é isto que vê, não há movimento.
O homem esboçou um sorriso e respondeu: Sim, estou de passagem. Há muito que não vinha aqui. E vejo que tudo está na mesma, poucas ou nenhumas mudanças. Está tudo muito parado e barco parado não faz viagem.
O empregado encolheu os ombros com desânimo e interrogou-se: antes era o que era e agora é o que é…  até há quem afirme que vamos ser um país de serviços, como se algum país conseguisse sobreviver sem agricultura, sem indústria, sem pescas e sei lá que mais!… É isto: antigamente ainda se fazia alguma coisa, agora compramos tudo feito… O senhor ouviu aqueles dois clientes que saíram agora? Eles falam e têm razão, mas não chega ter razão. E quando há jogos na cidade, fazem um sacrifício e lá vão eles ajudar  a alimentar o desaforo que aí vai! Mal vai a coisa quando a bota não dá com a perdigota, que é como diz criticam aceitando ou aceitam criticando. O senhor entende isto?
O homem esboçou um gesto vago e devolveu a pergunta: quem entende isto? Nem sei se é para entender, mas a realidade que temos é esta. Qualquer interrogação parte duma situação concreta. É um passo em frente uma pessoa questionar e questionar-se, mas se se ficar pela interrogação, isto é se não der o segundo passo que será o de transformar ou tentar transformar ou ajudar a transformar a situação questionada de que adianta questionar? Alguém escreveu, não me lembro do nome do autor desta frase: o povo parece um cão que ladra muito, mas morde pouco. E não se trata de um apelo à violência, se bem entendo o alcance da frase. Eu interpreto-a como um apelo à firmeza, a uma atitude de consciente cidadania. E isto porque um cidadão consciente conjuga o pensamento com a postura, porque só ambos se completam.
Deve ser como diz, sim, consentiu o empregado.
Levantando-se, o homem  despediu-se: Agora tenho de ir. Quanto devo? Tenha uma boa tarde.


José-Augusto de Carvalho
25 de Julho de 2018.
Alentejo * Portugal


28 - CLAVE DE SUL * Este fascínio do Sul!


(CLAVE DE SUL) 


Este fascínio do Sul! 





Ah, todas as manhãs, o sol do Meio-dia 

deslumbra o Céu azul! 

O ardente sol que canta e encanta a melodia 

do fascínio do Sul. 



E os versos da canção 

dolentes afagando a calma dos caminhos 

e o candor da emoção 

das aves, ao sol-pôr, buscando a paz dos ninhos… 



No enleio que me enlaça, 

pressinto o palpitar da perdida inocência, 

tão longe da ameaça 

ao direito de ser e de sobrevivência. 





José-Augusto de Carvalho 
23 de Julho de 2018. 
Alentejo * Portugal

sexta-feira, 20 de julho de 2018

03 - ESTA LIRA DE MIM!... * Verificação


(Esta lira de mim!...)

*

Verificação




Meus sonhos que não couberam

nos horizontes sem fim,

caber afinal puderam

nesta saudade de mim.



Na ânsia que me consumia,

sei que não fui e não vim…

E hoje sou a cinza fria

do fogo que ardia em mim.



Há em nós tudo o que fomos,

numa pureza menina

que nos dói e determina

esta saudade que somos.



E após o drama da Vida,

que promessa foi cumprida?





José-Augusto de Carvalho
Lisboa, 6 de Julho de 1993.



quinta-feira, 19 de julho de 2018

21 - DO MAR E DE NÓS - 2 * O sonho que me sonha

DO MAR E DE NÓS-2

*
O sonho que me sonha 






Livre, navega o sonho que me sonha. 

O vento de feição --- icei as velas. 

Que o transe que me espera o Mar disponha 

de assombrações, de medos, de procelas… 



Que cantem as fatídicas sereias 

o fado que eu há muito sei de cor, 

o fado que eu herdei e em minhas veias 

palpita em dó menor, em dó maior. 



Meu fado que tens mastros e velames 

e um leme por desígnio e condição… 

Guitarra que por cordas tens cordames, 

por forma e por sentir meu coração! 



Que levas sob o céu e sobre as ondas 

as melodias que inventar o vento, 

as melodias com que insone sondas 

o lucilar do meu encantamento… 





José-Augusto de Carvalho 
19 de Julho de 2018. 

Alentejo * Portugal 

quarta-feira, 18 de julho de 2018

21 - DOMAR E DE NÓS-2 * O sonho de um Povo


(DO MAR E DE NÓS – 2) 
O sonho de um Povo 



Para o Comandante Serafim Pinheiro, 
Capitão de Abril, meu Amigo 




Depois dos Cabos, veio o mar aberto: 

os ventos e o mar-chão e as calmarias... 

O Sol ardia e tu também ardias 

no mar e céu do teu futuro incerto... 



Dos longes vinham a fragrância rara 

e os paladares raros do Levante… 

Ai, se eu não posso, que Camões te cante: 

"e se mais Mundo houvera, lá chegara"! 



Amaste o Mundo além a que te davas… 

Um Mundo sem fronteiras reclamaste… 

E em cada caravela regressaste 

saudoso desse mundo que deixavas. 



De ti herdámos ser filhos do Mar 

e o sonho que porfia em nos sonhar… 





José-Augusto de Carvalho 
17 de Julgo de 2018. 
Alentejo `Portugal

domingo, 15 de julho de 2018

21 - DO MAR E DE NÓS * Os nossos Cabos


DO MAR E DE NÓS-2

.

OS NOSSOS CABOS






À memória de Gil Eanes




Há sempre mais um cabo por dobrar...

Dobrado o Cabo Não, o Bojador

ergueu-se hostil e um trágico rumor

desceu, num pesadelo, sobre o mar.



O Gil tomou o leme e sem tremer

levou a caravela e um Povo todo

além do medo, além do sal e iodo,

até ao longe por amanhecer!...



E o dia por haver amanheceu,

lavado p'la procela que bramia,

cantado p'lo velame que gemia,

ousado porque ao medo não cedeu!...



De cabo em cabo, foi a ousadia

de ir mais além do sonho e da utopia...




José-Augusto de Carvalho
15 de Julho de 2018.
Alentejo * Portugal,
*
(O navegador Gil Eanes, natural de Lagos (?), cidade da Província do Algarve, comandou a caravela que dobrou o então temido Cabo Bojador em 1434.)

sexta-feira, 13 de julho de 2018

11 - LIVRO O MEU RIMANCEIRO * Exortação



O MEU RIMANCEIRO 


Exortação 




Há um tempo cumprido. 

Há um tempo a cumprir. 

Um minuto perdido 

é andar e não ir. 


A boca que consente 

o grito sufocado 

decide no presente 

um futuro adiado. 


A inércia não existe. 

Perpétuo, o movimento 

definido persiste 

ser acção, ser alento. 


Quem perder a coragem, 

sujeito à rendição, 

não irá de viagem 

dobrar o Cabo Não... 




José-Augusto de Carvalho
Lisboa, 13 de Maio de 1996.
Corrigido, 13 de Julho de 2018.
Alentejo - Portugal

quarta-feira, 11 de julho de 2018

16 - NA ESTRADA DE DAMASCO * Quase uma oração


Quase uma oração 



Eu pago a água que é uma dádiva do Céu 

Eu pago a energia que é uma dádiva da água 

que é uma dádiva do vento 

Eu pago o pão que é uma dádiva da Terra 

que é um dádiva de quem trabalha a Terra 

Senhor que és omnipresente e não me vês… 

Senhor que és omnisciente e deixas-me perdido nos meus porquês… 

Senhor, eu sei que sou o barro que amassaste 

naquele dia antigo que perdura ainda nos escombros caóticos da memória 

Tu sabes que também do mesmo barro que amassaste 

eu fiz tijolos e ergui casas… 

E outros meus irmãos ergueram muros e cárceres que perduram… 

Senhor, o velho bezerro de ouro do Sinai 

é um velho sempre em novas transfigurações e perversões 

Senhor, a tua obra está datada 

e o tempo sempre noutros tempos reinventado degenerou 

Senhor, talvez tenha morrido o sonho que sonhaste 

Talvez, num outro tempo, 

no tempo de hoje, 

eu tenha de amassar um outro barro 

e inventar um sonho novo… 



José-Augusto de Carvalho 
Alentejo, 11 de Julho de 2018.

terça-feira, 10 de julho de 2018

28 - CLAVE DE SUL * Fadário


Fadário 

(Foto internet, com a devida vénia) 



Aqui, sou um poeta 

que vegeta 

num matagal de versos. 



José-Augusto de Carvalho 
Alentejo, 26 de Abril de 2018.