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terça-feira, 26 de maio de 2020

13 - NA PALAVRA É QUE VOU..., * As amoras de ouro



(Uma narrativa de José-Augusto de Carvalho)

*
1ª. Parte – As amoras de ouro 


Gabriel tinha nove anos. Vivia com seus pais, os camponeses Rafael e Matilde, numa hortinha que distava da aldeia uns quinze minutos a pé.

Gabriel chegava cedo à escola. Num saco de pano a tiracolo, carregava os livros, os cadernos e a merenda. Quando fazia mau tempo, o pai levava-o, pela manhã, e ia buscá-lo, à tarde, num carro de canudo, puxado pelo Catita, um muar possante e manso, da idade de Gabriel.

Tão manso era o Catita que, durante a época escolar, Gabriel, escarranchado em seu dorso, dava bons passeios pelos campos, aos domingos; e quando estava em férias, sempre que lhe apetecia. Nos dias habitualmente bonitos das férias grandes, passeava bastante.

Ora, num desses passeios, Gabriel viveu uma aventura como nunca tivera outra. Numa linda tarde de julho, foi à ribeira ver os patos bravos. Chegado lá, deixou o Catita à vontade, a pastar no restolho, e foi sentar-se na margem. Os patos nadavam, felizes, na corrente vagarosa.

Defronte, na outra margem, havia um silvado. Olhando, por acaso, viu um lenço branco acenando. Admirado, certificou-se de que estava só. Por isso, o aceno só poderia ser para ele. Quem estaria acenando de dentro do silvado? Acenou também. Mas estava curioso. Quem seria? Não pôde descobrir porque o lenço desapareceu.

A tarde caía e Gabriel regressou à hortinha. Catita troteava, contente. Quando entrou em casa, a mãe estava na cozinha, ocupada com o jantar. O pai, no alpendre ao lado, aparava canas para amparar os tomateiros.

Sentou-se num mocho, frente ao pai, e ficou observando-o, calado. Rafael olhou o filho e suspeitou: há coisa com o menino. Sem levantar os olhos da cana que aparava, perguntou:

-- Que tal de passeio, meu filho?

Gabriel baixou os olhos e respondeu:

--- Foi assim-assim, pai.

O hortelão estranhou a resposta e quis saber o porquê daquele assim-assim:

--- Como assim, meu filho? Que resposta estranha me dás.

A criança sentiu-se em falta e decidiu contar o que se passara naquela tarde.

Rafael olhou o filho nos olhos e quis saber:

-- Tens certeza, meu filho, de que viste um lenço acenando do silvado?

Gabriel disse que sim com a cabeça e ficou olhando o pai como que pedindo ajuda.

Pensativo, Rafael semicerrou os olhos, por segundos. Que história o seu menino lhe contara! Depois, determinou:

-- Meu filho, amanhã, iremos ver o que se passa.

Gabriel sorriu, satisfeito por seu pai estar disposto a ajudá-lo a descobrir aquele mistério.

Matilde chamou-os para jantar. Comeram um gaspacho, acompanhado de peixe da ribeira, acabado de fritar. Era sempre uma refeição deliciosa e refrescante, nos quentes dias de verão.

Terminado a refeição, Gabriel foi dar comida ao Mercúrio, um belo cão rafeiro alentejano, e à Estrela, uma cadelinha que mantinha, a distância, os coelhos bravos que viviam nos valados, sempre à espreita de uma oportunidade para irem comer as verduras da hortinha.

Enquanto Matilde arrumava a cozinha, Rafael foi regar as hortaliças e as árvores. Durante o tempo quente, gostava da rega ao cair do dia, para que a terra ficasse, até à manhã seguinte, com aquela fresquidão de que as plantas tanto gostam. Depois, foi ver o galinheiro, o Catita e as duas ovelhas.

Tudo estava em ordem. Terminadas as tarefas, todos foram dormir.

Ainda mal clareava e já o galo dava os bons dias à manhã que vinha chegando num có-có-ró-có-có estridente e poderoso.

Matilde chegou à cozinha e começou a preparar o pequeno-almoço. Rafael foi soltar as galinhas e as ovelhas. Gabriel chegou e sentou-se a tomar a habitual tigela de leite com farinha de fava. Seus pais beberam café de mistura e comeram pão e queijo. Finda a refeição matinal, Matilde foi ocupar-se dos trabalhos domésticos e Rafael foi buscar o Catita. Quando Gabriel saiu de casa, já o carro de canudo estava pronto para seguirem. Partiram. Da hortinha à ribeira, Catita gastaria um quarto de hora naquele trote alegre que dava voluntariamente à marcha. Na manhã ainda fresca, a passarada ensaiava livre e festivamente os seus voos e cantava. A natureza é muita bela, assim haja olhos para a apreciarem. Rafael e Gabriel ali haviam nascido, mas, sempre, quando o tempo estava bom, cada manhã era única na sua beleza.

Chegaram à ribeira. A água corria lenta. Os patos bravos, uns, no restolho, procuravam comida, outros nadavam. Rafael desengatou o Catita e deixou-o solto, a pastar. Depois, foi ter com o filho que se sentara no chão, na margem da ribeira, olhando o silvado à sua frente, na outra margem. Distinguiam-se as amoras, ainda verdes. O mês de julho ia adiantado nos dias. No final de agosto, algumas estariam maduras. As que despontavam no topo do silvado seriam para os pássaros. Ninguém lá chegaria. As que estavam do lado da água, não seria problema colhê-las. Ali, a ribeira era rasa. Mesmo agora, via-se o fundo, lisinho. Decorrido que fosse pouco mais de um mês, o caudal diminuiria. Talvez, ponderava Gabriel, a água não fosse acima da sua cintura.

Rafael sentou-se ao lado do filho. Olhou a água e os patos, depois fixou os olhos no silvado. Tentava descobrir qualquer coisa estranha, mas nada viu.

Gabriel, que observava o pai pelo canto do olho, lamentou:

-- Não há nem sinal do lenço branco, mas eu vi, eu juro que vi o lenço branco acenando para mim, pai!

Rafael sossegou-o:

-- Claro, Gabriel! Claro que viste! Tu não és mentiroso e nem estarias a sonhar...

E continuou:

-- Além do mais, meu filho, mentir é muito feio, e sempre se deve dizer a verdade. Mas sonhar é próprio das pessoas, não é assim?

Gabriel corrigiu, com um sorriso:

-- Das pessoas e dos cães, pai. O Mercúrio sonha muito. Às vezes, rosna e ladra baixinho, enquanto dorme. Nunca assistiu, pai?

Rafael, sorrindo também:

-- Já, sim, filho. Quando disse que sonhar era próprio das pessoas, era uma maneira de falar, pois os animais também sonham. Mas eu falava no sonhar acordado, entendes?

-- Que é sonhar acordado, pai?

O hortelão voltou a sorrir e esclareceu:

-- Sonhar acordado é a gente dar asas ao pensamento e criar, na cabeça, uma realidade muito nossa e que os outros não veem. Entendes o que quero dizer?

Gabriel acenou que sim com a cabeça. E confidenciou:

-- É, pai, o meu professor pergunta-me, às vezes, se eu estou na aula ou na horta... É que me distraio, e o meu pensamento ganha asas... Mas ele não se zanga, só me diz que, se eu estiver com atenção, aprendo mais e mais depressa.

--Pois, meu filho - concordou o hortelão - o professor tem toda a razão. Tens de aprender, para seres um homem.

Gabriel amava e admirava muito seu pai. Rafael era um homem bom, trabalhador e de uma dedicação sem limites à família. Era um hortelão excelente e criativo, muito respeitado na vizinhança e na aldeia.

Entretanto, o tempo passava. O silvado lá estava, defronte, na outra margem. Rafael, olhando o filho:

-- Vou buscar o Catita, teremos de regressar. Outra vez, aqui voltaremos. Hoje, não tivemos a sorte de ver o lenço branco.

Gabriel ficou sozinho, olhando ora os patos, ora o silvado. De repente, viu o lenço branco acenando. Sentiu o coração bater mais depressa no peito. E, num impulso, olhou para trás e gritou:

-- Pai, o lenço!

O hortelão deveria estar distante uns trinta metros dali. Caminhava, com o Catita à arreata, em direção ao carro de canudo. Aproximou-se do freixo, sob cuja copa estava Gabriel e o carro.

-- Viste o lenço, filho?

O menino estava triste.

-- Vi, meu pai, mas, quando gritei, o lenço desapareceu.

Rafael animou o filho:

-- Talvez o lenço não queira que eu o veja. Um dia destes, amanhã ou depois, virás aqui só com o Catita. Talvez consigas entender o que se passa.

Dito isso, atrelou o muar e puseram-se a caminho, de regresso à hortinha.

Quando chegaram, Matilde já enxaguava a roupa que lavara no tanque de rega. Estrela e Mercúrio vieram dar-lhes as boas-vindas.

Gabriel saltou do carro e foi ter com a mãe.

-- Minha mãe, eu ajudo a estender a roupa, sim?

Matilde acariciou-lhe a cabeça com a mão molhada. O menino pegou uma peça de roupa e foi estendê-la na corda que Rafael esticara entre os troncos de duas nogueiras. Regressou a buscar outra peça e assim sucessivamente, até estender a roupa toda.

Rafael desengatara o Catita e levara-o para o pequeno estábulo. O carro de canudo, como sempre, no verão, ficou à sombra de uma nogueira, pertinho da nora.

O sino da Igreja da aldeia bateu as doze badaladas do meio-dia. Matilde, que já regressara à cozinha, chamou-os para o almoço. Rafael interrompeu a sua faina e foi para casa. Gabriel, que estava junto do tanque, com Mercúrio, seguiu o pai.

Enquanto almoçavam, o hortelão contou à mulher a história do silvado, na ribeira. Ela sorriu e gracejou:

-- Ora, ora, Rafael, coisas de rapazes...

Gabriel, corando, defendeu-se:

-- Coisas de rapazes, não, minha mãe! Eu vi o lenço acenando, juro!

Continuando a sorrir, Matilde respondeu:

-- É claro, meu filho. Tu já estás quase um homenzinho, não irias mentir. Amanhã irás à ribeira, sozinho. Teu pai tem razão, o lenço só quer ser visto por ti.

Depois de comer, Gabriel foi dormir a sestinha, sua mãe ficou arrumando a cozinha e seu pai foi para o alpendre preparar as sementes que seriam lançadas à terra, depois das primeiras águas que cairiam lá para finais de setembro, princípios de outubro.

Lá fora, o silêncio era apenas cortado pelo cantar das cigarras. À hora do calor, só por dever se andava à torreira do sol...

Gabriel acordou quase às seis horas da tarde. Foi espreitar o sol. Ainda ia alto, mas já tombava para o ocidente. Seria uma boa oportunidade para dar um mergulho no tanque, pensou.

O menino já sabia que o Sol sempre «nasce» a oriente e se «põe» a ocidente. E já sabia também que o vento suão era ruim, porque queimava as plantas. Por isso seu pai tinha anualmente aquele trabalho de aparar as canas que, depois, cravava no chão, umas a seguir às outras, ligadas com ráfia, e a que chamava uma paliçada.

Matilde, na cozinha, costurava. A Estrela, deitada a seus pés, dormitava. Gabriel entrou, beijou a mãe e segredou:

-- Mãe, vou dar uns mergulhos no tanque.

-- Vai, meu filho! Está calor, ficarás fresquinho. Leva uma toalha para te enxugares.

O menino saiu de casa a correr. Mercúrio estava deitado à sombra duma nogueira, a uns passos do tanque, observando-o.

Gabriel já sabia nadar. Entrou na água, de mergulho, e demorou-se no tanque, divertido e refrescando-se. Não havia perigo, o tanque, quase cheio, teria, no máximo, um metro de fundura. Na ribeira, por recomendação do pai, agia cautelosamente: apenas entrava onde tinha pé, quando a corrente era vagarosa ou inexistente e a água transparente lhe permitia ver o fundo liso.

Gabriel reconhecia a razão de seu pai em todas as recomendações, porque, na aldeia, eram conhecidas e faladas as consequências das imprevidências de meninos e adultos. Seu pai sempre lhe explicava os porquês das suas recomendações. Nunca dizia não porque não, nem sim porque sim. Explicava, ensinava, era um amigo sempre disponível para ouvir, para ajudar, para aconselhar.

Quando o sino deu as sete badaladas, Matilde veio à porta da cozinha, que dava para o terreiro, e chamou o filho:

-- Meu filho, sai do banho, são horas de jantar!

O hortelão, ouvindo a mulher, deu por finda a tarde de trabalho no alpendre e entrou em casa. Gabriel, logo a seguir, entrou, correndo, de calções. E já à mesa, pediu:

-- Pai, vamos à ribeira depois do jantar?

Rafael estranhou e quis saber:

-- Meu filho, não ficou combinado ires lá amanhã de manhã?

Gabriel justificou:

-- Pai, ainda vai haver muita luz de dia e, se se fizer tarde, teremos a lua...

Rafael refletiu e respondeu:

-- É verdade, hoje há lua cheia. Está bem, meu filho. Antes, passaremos pela horta do senhor Amílcar, para eu lhe pedir que dê uma olhadela pela nossa. Quem sabe ele consente que sua filha venha fazer companhia a tua mãe até regressarmos.

Terminado o jantar, saíram. Levavam o Catita à arreata. O vizinho Amílcar atendeu ao pedido de olhar pela casa e disse à filha:

-- Laurinda, vai fazer companhia à vizinha Matilde até que o senhor Rafael e o Gabriel regressem. A tua mãe arrumará a cozinha.

Laurinda era uma rapariga dos seus dezassete ou dezoito anos, sempre sorridente e muito bonita. Tinha grande admiração e amizade pela vizinha Matilde, por isso foi de pronto.

Rafael agradeceu ao vizinho e partiu com o filho.

Seguiam por uma azinhaga, daí irem a par. Catita, à arreata, caminhava um pouco atrás.

Percorridos uns duzentos metros, o hortelão perguntou:

-- Meu filho, estavas tão impaciente que não pudeste esperar por amanhã?

Gabriel sorriu.

Rafael ficou intrigado com o sorriso do filho e quis saber:

-- É segredo?

O menino, sempre a sorrir, respondeu:

-- Não é, não. Eu não tenho segredos para o meu pai e para a minha mãe.

Rafael sorriu também, um sorriso de grande satisfação por confirmar que o seu querido filho lhe dava, mais uma vez, uma prova de confiança.

Gabriel disse, então, o motivo por que pediu a antecipação da ida à ribeira:

-- Meu pai, uma vez, a Laurinda disse-me que os rouxinóis cantam em grupo, nos silvados da ribeira, em noites de luar, e eu gostaria muito de ouvi-los. Pronto, como vê, não há segredo algum...

Rafael acariciou a cabeça do filho com a mão esquerda, pois, com a direita, segurava a arreata do Catita.

Já estavam perto da ribeira, e o hortelão, que se lembrava muito bem de que quem acenava só o fazia quando Gabriel estava sozinho, decidiu:

-- Eu ficarei escondido, a uns vinte ou trinta metros. Tu irás sentar-te defronte do silvado. Se fizermos assim, quem quer que te acene não me verá.

O menino entendeu a astúcia do pai e disse que sim com um aceno de cabeça. Separaram-se conforme combinado. Rafael sentou-se no chão, sob a copa de um freixo, cujo tronco o escondia da margem oposta da ribeira. Gabriel caminhou mais uns metros, até ficar defronte do silvado. Sentou-se e ficou olhando os patos que nadavam. A água, transparente, ganhava variados tons provocados pelos raios solares. Catita ficara solto, como sempre, no restolho. Feliz, a passarada ensaiava as suas acrobacias aéreas. Ouvia-se o cantar dos grilos. O sol despedia-se, escondendo-se na distância.

Gabriel estava ansioso. Será que o lenço branco apareceria, acenando? Será que os rouxinóis viriam cantar em grupo?

A uns vinte e tal, trinta metros, Rafael observava, pacientemente. E também se interrogava: aquela história do lenço era intrigante. Mas teria de atender a vontade do filho. E mais, teria de estar com ele, para protegê-lo.

Esmoreciam as partículas da luz solar que garantem o período que medeia entre o pôr-do-sol e o anoitecer. A passarada diurna já disputava os raminhos altos dos freixos, para pernoitar.

Caída a noite, Gabriel assistiu a uma cena extraordinária: os rouxinóis chegavam, e cada um ia piando como nas orquestras, quando os músicos procuram afinar os instrumentos de sopro. Depois, calaram-se, de repente.

O menino nunca assistira a tal maravilha. Os rouxinóis ocupavam as suas posições. O concerto iria começar... Olhava, fascinado. E a sinfonia começou.

É impossível descrever a magia dos sons emitidos por uma vintena de gargantas. Apenas nos resta imaginar uma melodia talvez inacessível à criatividade humana. E o luar brincava nas águas transparentes da ribeira, dando-lhes reflexos de prata. Os patos, imóveis, ouviam extasiados, como que deixando passar a beleza do canto.

E eis que, no silvado, o lenço branco acenou. Gabriel estremeceu. A beleza da sinfonia dos rouxinóis varrera da sua mente a expectativa que tinha de ver o lenço branco acenando-lhe. Era de mais, tudo quanto desejava acontecia, e ao mesmo tempo! Sorriu, feliz. Um sorriso de espanto e de encanto. Correspondeu ao aceno, sempre sorrindo. E aconteceu o que supunha impossível: o silvado abriu uma fenda e dela saiu um barquinho. Nele, uma menina toda vestida de branco. Gabriel suspendeu a respiração. Não podia ser! Estava sonhando! Mas não estava. O barquinho vinha em sua direção. Os rouxinóis calaram-se e os patos reverenciavam a menina à sua passagem. O barquinho varou a proa exatamente a uns centímetros dos seus pés. A menina, de pé, estendeu a mão direita para ele, pedindo ajuda para descer.

Era uma menina linda, talvez da sua idade.

-- Olá, Gabriel! - Saudou-o.

-- Olá! - A voz, de tão emocionado que estava, era um murmúrio. E como sabia ela o seu nome?

-- Há muito que te esperava! Há muitos, muitos anos...

Gabriel arriscou:

-- Como sabes o meu nome? E como me esperavas há muitos anos? Nós somos ainda crianças...

A menina sorriu e disse:

-- Meu nome é Lorata, e sei o teu nome desde sempre, mensageiro...

Gabriel já não entendia nada...

-- Lorata? Que nome estranho! Nunca ouvi. E mensageiro? Que queres dizer?

Lorata esclareceu:

-- É natural que o meu nome te seja estranho. Eu venho de outro país, de um país que tem uma língua diferente da tua. Mensageiro porque o teu nome -- Gabriel -- é o que quer dizer, não sabias?

O menino corou, envergonhado. Nem imaginava que seu nome quisesse dizer alguma coisa...

E a menina continuou:

-- Trago-te um presente: sete amoras. Estão aqui neste saquinho de cetim. Comerás cinco. As duas restantes, irás guardá-las durante sete dias, numa tacinha de vidro, numa gaveta. No oitavo dia, quando fores buscá-las, terás uma surpresa. E na próxima lua cheia aqui te esperarei. Até lá, não me verás.

Dito isso, Lorata regressou ao barco e partiu. Gabriel ficou calado, com o saquinho de cetim na mão, vendo-a afastar-se. O barquinho deslizou sobre as águas de prata em direção ao silvado, que abriu a fenda para ele entrar.

Gabriel caminhou em direção ao freixo onde estava seu pai. Rafael adormecera. Acordou-o. O hortelão abriu os olhos, confuso, e exclamou:

-- Peguei no sono. Estava ouvindo os rouxinóis - uma beleza de canto - e, sem querer, adormeci.

-- Vamos, pai! No caminho lhe contarei o que sucedeu...

Rafael foi buscar o Catita. Já caminhando, pediu ao filho:

-- Bem, conta lá as novidades!

E Gabriel contou. Rafael não podia acreditar. Mas, se era fantasia, como explicar o saquinho de cetim que seu filho trazia na mão? Nunca na vida tivera um enigma assim!

Chegaram à hortinha já depois da meia-noite. Mercúrio saudou-os, alegremente. Na cozinha, Matilde e Laurinda conversavam. Quiseram saber notícias do passeio noturno. Prudentemente, Gabriel deixara o saquinho de cetim no alpendre. Contou as maravilhas do concerto dos rouxinóis. Do lenço branco, não falou à frente de Laurinda.

Depois, Rafael foi levar Laurinda a casa, e Gabriel foi buscar o saquinho de cetim.

Matilde ficou maravilhada. Era um saquinho muito, muito bonito, todo bordado com sinais estranhos entrelaçados e compondo desenhos. Gabriel pousou cinco amoras sobre a mesa da cozinha. As duas restantes, colocou-as numa tacinha de vidro e foi guardá-las, conforme Lorata lhe dissera.

Quando Rafael regressou, Gabriel contou à mãe tudo o que se passara na ribeira. Matilde ficou boquiaberta.

Gabriel decidiu que os três comessem as cinco amoras. E todos reconheceram que nunca haviam comido amoras tão boas.

Entretanto, as horas passavam. O sino da torre dava duas badaladas. Matilde exclamou, admirada:

-- Duas da madrugada! Temos de ir descansar. Amanhã, só para o Gabriel não será dia de trabalho...

E foram descansar.

Foi uma noite desigual. Gabriel sonhou com o concerto dos rouxinóis e com um passeio de barco com Lorata. Matilde, apesar do cansaço da labuta diária, ainda sonhou com o saquinho que Gabriel trouxera.

Rafael, intrigado com toda a história e mais ainda com os sinais bordados no saquinho, pensava consultar o professor do filho. Quem sabe, talvez, a chave do enigma estivesse nos sinais? Adormeceu tardíssimo.

O galo, como sempre, gritou o seu poderoso có-có-ró-có-có quando as estrelas empalideciam. Rafael acordou com o cantar do galo. Era o seu despertador habitual. Levantou-se com todo o cuidado, para não acordar a mulher. Saiu de casa. No terreiro, Mercúrio fazia a sua guarda, andando de um lado para outro. Veio ao encontro do dono, abanando a cauda. O hortelão soltou as galinhas e as ovelhas. Depois, foi ver o Catita. O muar recebeu-o com um olhar prolongado e dócil. Porque tudo estava bem com os animais, regressou a casa. Aqueceu café e comeu uma fatia de pão com queijo. Depois, foi trabalhar no alpendre. Por lá se demorou até cerca das nove horas. Voltou a casa, lavou-se e vestiu-se devidamente para ir à aldeia. Cerca das dez horas, bateu à porta do professor. O professor era um homem mais velho, quase na casa dos sessenta.

-- Bom dia, senhor Rafael! A que devo a sua visita? O nosso Gabriel está bem?

-- Bom dia, senhor professor! O Gabriel está bem, sim senhor. Desculpe incomodá-lo, mas decidi consultá-lo sobre um enigma.

-- Um enigma? Vamos entrando. Sente-se. Ora, diga-me o que há...

Rafael entrou, sentou-se e estendeu-lhe o saquinho de cetim.

-- Ora veja!

O professor pegou no saquinho de cetim, olhou-o atentamente e, intrigado, perguntou:

-- Que saquinho é este?

Rafael, cautelosamente, informou:

-- Uma menina deu esse saquinho ao meu Gabriel. O que me intriga não é o saquinho, mas os sinais bordados. Eu nunca vi nada parecido e nem a minha Matilde.

O professor, olhando de novo para o saquinho, arriscou:

-- O que está bordado no saquinho são letras entrelaçadas, letras diferentes das nossas, por isso o senhor não as identificou.

-- Letras? - Estranhou Rafael.

-- Sim, serão letras árabes, creio eu...

O hortelão coçou a cabeça, confuso, e tornou:

-- Mas a menina falava português, senhor professor... Como poderia ser árabe? Como poderia haver uma menina árabe aqui, no campo?

O professor não tinha resposta para as perguntas que lhe fazia Rafael. Por isso mesmo, respondeu, encerrando o diálogo:

-- Pois, é o que lhe posso dizer, quanto ao mais, não sei.

Rafael saiu da casa do professor ainda mais intrigado. Regressou a casa refletindo, buscando encontrar o caminho ou caminhos a seguir para desvendar aquele mistério.



Na hortinha, o tempo corria normalmente. Apenas Gabriel contava os dias, desejoso que passassem para ir ver a tacinha guardada na gaveta e que só poderia abrir findo o prazo determinado por Lorata.

Finalmente, o oitavo dia chegou. Gabriel, ansioso, saltou da cama e abriu a gaveta da cómoda. Olhou e ficou espantado. As amoras, que eram pretas, estavam, agora, amarelas. Pegou uma, cuidadosamente. E, de novo, ficou espantado. A amora era dura e mais pesada. Parecia de metal. Então, pegou a outra também e correu para a cozinha, gritando:

-- Mãe, olhe as amoras!

Matilde, na cozinha, preparava o pequeno-almoço. O hortelão, sentado à mesa onde faziam as refeições, olhava o filho, surpreendido.

-- Veja, pai! - E o menino mostrava as amoras na palma da mão.

Rafael olhou para a mulher. E ela também o olhava. Estariam pensando o mesmo? E, sem querer, ele murmurou:

-- Até parece feitiço! Se a gente não tivesse comido as outras, iria pensar coisas...

-- Também acho, Rafael... - Disse Matilde.

Gabriel, calado, olhava ora para o pai, ora para a mãe...

Rafael virou e revirou as amoras. Não havia dúvida, eram amoras de metal, um metal qualquer, amarelo. Preocupado, disse à mulher:

-- Matilde, não vamos falar disto a ninguém. Terei de ir à cidade tratar da licença da espingarda. Irei amanhã, pela manhã. Levarei as amoras. Lá saberei que metal é este.

Na manhã seguinte, Rafael atrelou o Catita ao carro de canudo e partiu. Regressou ao final da tarde. Entrou na cozinha com ar preocupado. Impaciente, Matilde quis saber notícias das amoras.

-- Então, homem? E as amoras?

Rafael contou:

-- Fui a uma ourivesaria. Mostrei as amoras. O ourives pegou nelas, curioso, dizendo não ser hábito fazerem amoras de ouro.

-- Amoras de ouro? Que dizes tu, Rafael?

-- Pois, Matilde. E mais, perguntou se eu lá fora para vendê-las. Ora, eu não desarmei e disse-lhe que apenas queria avaliá-las, para saber com o que contar em um dia que precisasse de dinheiro.

-- Isso mesmo, Rafael! Nunca se sabe o dia de amanhã. E temos este menino para criar.

-- É isso ai, sim, Matilde... -- Acudiu Rafael. E continuou:

-- Mas ninguém poderá saber da existência destas amoras de ouro, porque ninguém iria acreditar neste mistério que estamos a viver.

Gabriel, entrando na cozinha, pediu:

-- Mãe, tenho fome! O jantar demora ainda?

Matilde, sorrindo para o filho, desculpou-se:

-- Ah, meu filho, desculpa-me, mas demorámos na conversa. Vamos jantar, sim, e já. Vai lavar as mãos e senta-te à mesa.

E os dias foram passando...

domingo, 20 de outubro de 2019

13 - NA PALAVRA É QUE VOU... * Falando de dores



NA PALAVRA É QUE VOU… 

Falando de dores 







Hoje, tentemos conjugar o verbo doer…

Qual será o significado do lamento: estou com uma dor de dentes difícil de suportar?

Afinal, uma dor de dentes é um problema que o Serviço Nacional de Saúde (mal)trata e de que a odontologia privada se ocupa se ou quando a disponibilidade do meu salário mo permite. Assim, tal qual – quem quer saúde, paga-a!

Evidentemente que a dor de dentes é um exemplo entre todas as outras dores que nos afligem ou nos podem afligir enquanto caminhamos nesta viagem finita em que vamos…

… vamos, muitos cantando e rindo;

… vamos, muitos encarando a viagem como uma via profana (via crucis reduzida à dízima);

… vamos, muitos sem darem por nada, numa acomodação mísera e mesquinha (e aqui te evoco, meu amado Luís, mais uma vez);

… vamos, outros ainda, mas poucos, muito poucos, esbracejando ou esbravejando;

--- vamos, uns tantos proclamando serem do contra porque é bonito ser contestatário ou porque lhes convém inocuamente lavarem a consciência…

.

Vejamos:

-- eu sei que pago os meus Impostos;

-- eu sei que sou, desde o velho Adão, obra do Criador, logo eu e todos os demais pertencemos à única Irmandade --- a Irmandade Humana;

-- eu sei que a Mãe Eva e o Pai Adão mal se comportaram cometendo o pecado da desobediência e, por isso mesmo, foram expulsos do Paraíso, passando eles depois as passas do Algarve e outras mais… e que no-las deixaram de herança até hoje, numa penitência de longevidade que me assombra; mas tudo bem, a misericórdia do Criador é infinita;

-- eu sei que a nossa Leonor, filha do Duque de Beja, depois rainha, após o casamento com o Príncipe Perfeito, o nosso Dom João II, Rei de Portugal de perene memória apesar das aleivosias de muitos, criou as Misericórdias, obra modesta e, avento eu, paroquialmente inspirada na misericórdia infinita;

-- eu sei que os Direitos Humanos dizem defender-me;

-- eu conheço a Declaração Universal dos Direitos do Homem (ONU, 1948);

-- eu conheço os direitos constitucionais do cidadão português;

-- eu suponho saber ler, mas quanto mais leio, mais me parece que vivo um equívoco:

-- eu suponho saber escrever (cartas à família e pouco mais…), mas quanto mais escrevo menos leitores tenho; mas entendo isto: o silêncio mata, logo eu sei que me estão matando… E aqui eu sorrio divertido: não percam tempo querendo matar-me!… a Senhora Dona Morte (olá, Florbela, minha amada) não vai cometer a maldade de se esquecer de mim…

Até sempre!

*

José-Augusto de Carvalho
20 de Outubro de 2019.
Alentejo * Portugal

quinta-feira, 10 de outubro de 2019

13 - NA PALAVRA É QUE VOU... * A Direita e a Esquerda



NA PALAVRA É QUE VOU...
.
A Direita e a Esquerda


Diz quem sabe dessas coisas da História que as tais Direita e Esquerda surgiram com a Revolução Francesa. A tal Grande Revolução Burguesa que, em 1789, em França, apeou a Realeza, a Nobreza e a Igreja Imperial de Constantino. Foi nessa data e com o decisivo empurrão do povo ignorante e faminto que a Burguesia tomou o Poder.
Os Girondinos eram a Direita, os direitícias; os Jacobinos eram a Esquerda, os esquerdícias.
O Poder da Burguesia trouxe consigo a divisa Liberdade * Igualdade * Fraternidade. Para eles, burgueses, apenas para eles, é claro.
A Burguesia trouxe o Capitalismo, mais direitícia, mais esquerdícia, sempre Capitalismo.
As amarguras do povo mantiveram-se. Apeados os Senhores das Linhagens, subiam ao palanque os Senhores do Lucro. Enfim, como diz o rifão: «Tudo como dantes, Quartel-General em Abrantes»! Há quem prefira estoutra sentença: «A m... é a mesma, as moscas é que são outras».
Evidentemente que o Poder da Burguesia foi um passo qualitativo no decurso da História dos Homens. Foi e já não é há muito tempo.
Com a chamada Idade Industrial, ficou muito clara a importância da força de trabalho, isto é, do povo. E com esta peça nova no xadrez, o povo como força de trabalho, surgiram os inevitáveis conflitos entre patrões e trabalhadores assalariados e as ideias destes conducentes a um dia se emanciparem do Poder Burguês.
Enquanto isto, os direitícias e os esquerdícias iam-se revezando na condução dos destinos das gentes. Ora governavam uns, ora governavam outros, ora, num lindo par, governavam juntos. E tão bem ficavam no par, que o povo, sempre criativo, inventou esta máxima: «São tão lindos, tão lindos, que Deus os fez e Deus os juntou!» 
E com a criação deste par, os direitícias e os esquerdícias «inventaram» o Centro. Foi aí que este pariu os centrícias. 
Depois, decidiram criar outras combinações, mas sem jamais se desviarem um milímetro da sua matriz: Poder da Burguesia. Aliás, teremos de convir que nada de diferente seria de esperar. Se deixassem de ser o que são, perderiam a sua identidade. E isso é o que eles não querem. Pudera!
De entre outras, uma interrogação o povo se coloca: Por que será que os que se dizem do povo e eleitos pelo povo estão reclamando para si a designação de esquerdícias? Por que sentem a necessidade de procurar no Poder da Burguesia uma palavra que os defina? A palavra que define o Poder do Povo não lhes agrada? Pois eu proclamo ser um democrata, porque defendo a Democracia, a tal expressão grega que significa Poder do Povo ou Poder Popular.
Direitícias, Esquerdícias, Centrícias e por aí adiante são as negaças de que se serve a Burguesia para caçar os distraídos...


José-Augusto de Carvalho
1-11-2006.
Alentejo * Portugal

segunda-feira, 20 de maio de 2019

13 - NA PALAVRA É QUE VOU... * Os descaminhos


NA PALAVRA É QUE VOU…

*
Os descaminhos


Uma estrada de cem léguas começa por uma passada…
Um incêndio pode começar com uma faúlha…




O futebol profissional é um espectáculo como outro qualquer. Os estádios se emolduram de povo e os artistas exibem os seus dotes no relvado.
A diversão é salutar e desde há muito que as sociedades humanas organizadas propiciam ao povo espectáculos lúdicos. Até porque nem só de pão vive o ser humano…
Há espectáculos lúdicos ou de outra natureza que provocam emoções, sabemos disso; mas também sabemos que o ser humano tem o dever de controlar as suas emoções por um imperativo de cidadania.
O atropelo de noções básicas de convivência gera situações de conflito que deterioram o ser e estar da comunidade.
A sociedade organizada tem meios legais para se reclamar de uma qualquer situação que se nos apresente como injusta. Afinal, vivemos num Estado de Direito.
É ilegítima a reacção insultuosa e/ou caluniosa, seja para com os nossos semelhantes, seja para com instituições públicas ou privadas.
Uma sociedade civilizada tem o dever de saber defender-se, de saber respeitar-se, de saber fazer-se respeitar…
A foto que ilustra este texto, é só mais uma gota do oceano de discórdia onde perigosamente parece querermos mergulhar.
Sem animosidade, mas preocupado com a sociedade onde vivo, uso do meu direito elementar de cidadão para opinar
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Nota: Foto do jornal O Jogo, com a devida vénia.

*
José-Augusto de Carvalho
19 de Maio de 2019.
Alentejo * Portugal.

terça-feira, 7 de maio de 2019

13 - NA PALAVRA É QUE VOU... * A instante interrogação

NA PALAVRA É QUE VOU...

*
A INSTANTE INTERROGAÇÃO




Para além dos múltiplos deveres e direitos do quotidiano, para além do convívio social dito civilizado do mesmo quotidiano, para além dos afectos, a nossa vida é a instante interrogação de nós mesmos e de tudo o que nos perturba e nos reduz ao desconforto ansioso do real que intuímos e à utopia que perseguimos.
Passamos pela existência de outrem e deixamos ou não memória de nós; passam pela nossa existência e deixam ou não memória da sua passagem. E quando a memória não é perene, poderemos ou não citar Lavoisier? Nada se cria, nada se perde, tudo se transforma… (cito de cor).
Se, por um motivo ponderável ou não, nos ausentamos, o convívio social dito civilizado já referido sentiu a nossa ausência ou continua imperturbável? Será que, perante a nossa ausência, indiferente sentencia só fazem falta os que estão?
Certa vez, uma pessoa me falava incomodada de alguém que experimentava o outro. Experimentava na acepção de testar, sublinho. Confesso que fiquei surpreendido e ainda hoje assim continuo. Não tenho a pretensão de molestar quem pensa diferente, mas vejamos:
1- Como me parece adequado, comecemos pelo "princípio". Sim, princípio em itálico. Tenho por certo que pouco ou nada sabemos do Princípio e pouco ou nada saberemos do Fim. Aqui vamos neste nosso tempo fazendo os possíveis e sonhando os impossíveis para chegarmos inteiros ao fim da efémera jornada. Ora bem, o mito do Eden é claro: Deus testou ou experimentou Adão e Eva com o fruto proibido. E, que me conste, ninguém molesta Deus por isso.
2- Quando o outro é testado numa prova qualquer, também ninguém ergue a voz protestando.
3- Quando sondamos o outro no sentido de sabermos se contamos ou não com ele para um objectivo qualquer, estamos testando a sua (in)disponibilidade.
4- Quando criamos uma expectativa do outro, alguns indícios dele conhecemos ou supomos conhecer e esses indícios pressupõem um teste indirecto.
Afinal, qual de nós não testa o outro?
Colocado quanto antecede, a conclusão parece evidente: a nossa existência é uma interrogação permanente de nós mesmos perante o outro porque só no outro poderemos encontrar-nos ou não e assim nos cumprirmos ou não.
*
José-Augusto de Carvalho.
Alentejo* Portugal

terça-feira, 19 de março de 2019

13 - NA PALAVRA É QUE VOU... * Saudade


NA PALAVRA É QUE VOU...
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S a u d a d e 



É um dia abrasador de Julho. O quintal ganha os contornos duma fornalha. Ao fundo, corre a rua empinada. São duas horas da tarde. Sonolenta, a vila estiraçada ao sol. Nem viv’alma. As cigarras cantam, ensurdecendo tudo e todos, esquecidas ou ignorantes da fábula. 

Maria sai da cozinha com um alguidar de roupa lavada. Com a destreza da experiência dos anos, começa a dependurá-la na corda que atravessa o quintal de topo a topo. Com este calor, daqui a nada estará seca, murmura de si para si. 

Soa a aldraba do portão que dá para a rua empinada. Maria grita lá vou… e vai abrir o portão. É a filha que chega de Évora, vem afogueada e protesta: 

--- Que calor, mãe! Passa dos quarenta graus! E a camioneta da carreira é uma frigideira! 

Maria encolhe os ombros resignada e corrobora o protesto: 

--- Este maldito verão é sempre assim, filha! O expresso para Lisboa tem ar condicionado, mas as carreiras, aqui na zona, são esta vergonha… O povo não merece mais! 

D’Airinhas é uma estampa de rapariga. Andará pelos dezoito anos. Sorri para a mãe e repreende-a com doçura: 

--- Oh, mãe, lá vem a política outra vez! 

Maria enfrenta a filha com severidade: 

--- Maria d’Aires, a tua mãe sabe o que é a vida! Tu é que não sabes nem terás idade bastante para saber! Habitua-te a ouvir os mais velhos, os que já viveram muitos anos! As pessoas da minha idade e as mais velhas sabem muito bem como é esta dança dos políticos, sempre prometendo, sempre arranjando desculpas para não cumprirem o que prometem… São uns mentirosos! 

D’Airinhas abraça ternamente a mãe e sossega-a: 

--- As coisas irão melhorar. Vivemos em democracia. A revolução pôs um ponto final nos tempos negros da ditadura. 

Maria meneou a cabeça negativamente, com tristeza. 

--- Filha, a revolução foi um sonho. Essa coisa de o povo é quem mais ordena era boa de mais para ser verdade! Os cravos murcharam e secaram -- são uma saudade, nada mais. 



José-Augusto de Carvalho 
5 de Julho de 2005. 
Alentejo * Portugal 

terça-feira, 5 de março de 2019

13 - NA PALAVRA É QUE VOU... * A árvore


NA PALAVRA É QUE VOU…
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A árvore 



Na minha adolescência, sobressaía um companheiro pela irreverência: “eu sou bom aluno, aprendo logo à primeira”. Recordando-o agora, assalta-me esta dúvida: talvez eu seja retardado, daí que tivesse de esperar dezena e meia de anos para finalmente perceber que Fernando Pessoa estava errado quando escreveu “tudo vale a pena quando a alma não é pequena”. Ou, sem me diminuir assim tanto, talvez eu tenha acreditado, enfrentando e afrontando as intempéries, que o tempo tudo conserta ou tudo concerta… vá lá eu saber!...
Decorridas dezena e meia de anos, verifico que o tempo nada consertou ou concertou. Agora, estarei onde o velho Sócrates “quis” que eu sempre estivesse quando proclamou “eu só sei que nada sei”.
Não me arrependo de ter dado tempo ao tempo… Só que eu não posso competir com o velho Cronos. Ele é perene, eu sou efémero. Ele aí está pujante, eu aqui estou gasto de anos e minguado de horizonte.
“Até ao lavar dos cestos é vindima”, diz a sabedoria popular neste meu chão de fome e de pão, de sede e de vinho, de mar e de voltar ou não. Ah, mas creio nos saberes ancestrais! E lavados os cestos que me couberam na labuta, dou por finda a minha participação na vindima. 
A realidade de mim foi o que foi. Não posso voltar atrás para corrigir seja o que seja e não tenho motivo ponderável para protestar agora. Tenho ou suponho ter consciência dos meus limites. E é com a mesma inteireza com que ontem aceitei o desafio que decido hoje optar pela gruta do eremita, no deserto do meu recolhimento. Levo comigo as verdades de sempre, para meu conforto. 
Ajudei a plantar a árvore… Benditos sejam os que se deliciarem comendo os saborosos frutos! 



4 de Março de 2019.
Alentejo * Portugal

quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

13 - NA PALAVRA É QUE VOU.. * O regresso ao caos?


NA PALAVRA É QUE VOU… 


O regresso ao caos? 





A desvalorização ostensiva de tudo o que não nos afecta directamente, a indiferença pela amargura do outro, o umbigocentrismo de tantos e tantos, é uma mazela social purulenta que reclama tratamento imediato. 

O humanitarismo religioso e profano definha e estás prestes a agonizar. 

Viva eu! 

Viva eu e os outros que se danem! 

Ai de mim se não for eu! 

O objectivo é cada um de per si safar-se ou virar-se como puder? 

Será que cada um de nós vive numa ilha deserta? 

Será que cada um de nós não é parte de um contexto social onde há direitos e deveres indeclináveis? 

Será mesmo uma realidade consagrada que “a pimenta no ânus do outro é refresco para mim”? (Reconheço a grosseria desta “sabedoria” dita popular, mas a sua brutalidade é deveras ilustrativa e soa como um grito de alarme.) 

E chegámos aqui depois de séculos e séculos de doutrinação religiosa; depois de Humanismos e Iluminismos; depois da Liberdade, Fraternidade e Igualdade da Grande Revolução Burguesa de 1789, em França; depois de manifestos e mais manifestos; depois de Declarações de Direitos e Deveres, da ONU; depois de Constituições Políticas em vigor proclamando o Direito, a Justiça, a Defesa da Vida, a Concórdia e a Paz… e eu sei lá mais o quê! 

Os raros reconhecidos como salvadores do ser humano, da fauna e da flora, do planeta que é o nosso lar maior, disseram e demonstraram a justeza dos seus ensinamentos. E que lhes sucedeu? Foram perseguidos, foram presos, foram condenados, foram sacrificados com requintes de crueldade como se fossem perigosos malvados a abater sem piedade. O mandamento “Não matarás” é uma das muitas utopias… 

Afinal, o que somos? 

Afinal, o que queremos ser? 

Todos os dias, a todas as horas proclamamos uma única revelação --- a perdição. 

Herdámos a Esperança de um futuro melhor; nem a perdição deixaremos por herança porque nos apressamos a matar também os nossos herdeiros. 

Será o regresso ao caos. 

Não me considero um pessimista; também não sou seguramente um optimista delirante; mas com a lucidez que considero ter, o que vejo e ouço e leio deixa-me profundamente preocupado. Há um desnorte instalado. Os povos, aqui e ali cirurgicamente alienados, engrossam as levas de cordeiros para os matadouros, para os açougues. E recordando um dos cruelmente injustiçados, também me surpreendo muito mais com o silêncio dos justos do que com as vociferações dos vis e dos acéfalos. 

Já não tenho idade para ter medo, mas enquanto for vivo sentirei um profundo desgosto vendo ruir o sonho maior da instauração da dignidade da Vida. 

Termino com a transcrição da frase que li ou ouvi a uma actriz brasileira: “se o mundo é isto, parem o bonde, porque eu quero descer.” 



José-Augusto de Carvalho 
10 de Janeiro de 2019.
Alentejo * Portugal

13 -NA PALAVRA É QUE VOU... * Sem pueris ingenuidades


NA PALAVRA É QUE VOU… 


Sem pueris ingenuidades 



Já não tenho idade para me surpreender facilmente. Sem pueris ingenuidades, aliás seriam inadequadas, deploro muito do que vejo em meu redor. E nada posso fazer, porque o mundo gira a seu bel-prazer, independentemente da minha concordância ou da minha discordância. Os mestres que tive sempre me ensinaram ser indispensável o conhecimento e o seu questionamento. Hoje, nesta época de informação ao segundo, o que mais vejo e ouço e leio é o primitivismo da banalidade, é o raciocínio elementar, é a prosápia convencida daqueles que encontraram aquela velha coisa que dá pelo nome de verdade. Não tenho a pretensão da sapiência, por isso mesmo me reduzo à celebrada frase atribuída a Sócrates --- eu só sei que nada sei. É verdade que sim, mas sempre adianto que não me considero tolo. Sustento que um efeito depende duma causa, que não há efeito sem causa, e por aí adiante. Mais sustento que a inércia não existe, logo a inércia que vamos vendo por aí não mais será do que o efeito de uma causa que no subsolo germina… 

Louvo os meus mestres, devo-lhes a possível lucidez que suponho ter e não lamento os desaires sofridos, resultantes dessa mesma lucidez. Nunca adoptei o cinismo, mas sempre entendi o porquê de duas frases vulgarmente usadas por alguns: às vezes, convém nos fazermos de tolos, 

e estoutra, mais vale cobarde vivo do que herói morto. Não arrisco qualquer juízo. Cada um sabe de si e responde por si. Eu não julgo ninguém, mas faço as minhas escolhas tal como os demais fazem as deles. 

As escolhas dos outros valem o que valem por elas mesmas. Se conflituam com as minhas, evidentemente que sustento as minhas escolhas e enfrento lealmente o debate que surgir. Aliás como toda a gente. 

O silêncio só é uma escolha quando agimos individualmente. Se inseridos num contexto mais amplo, o silencio que mantemos poderá ser lido como a inércia provocada, que mais não será do que o efeito de uma causa que se ignora ou talvez nem tanto… E aqui poderei ser apodado de especulador, mas há razões e não-razões para especular. E até posso adiantar que seria conveniente ponderarmos a possibilidade de algumas especulações serem mais da responsabilidade de quem é alvo delas do que de quem as tece. 

Aqui fica mais uma reflexão, uma entre tantas e tantas que cogito… 



José-Augusto de Carvalho 
9 de Janeiro de 2019. 
Alentejo * Portugal 

terça-feira, 27 de novembro de 2018

13 - NA PALAVRA É QUE VOU..., * Manifesto


NA PALAVRA É QUE VOU ...
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Manifesto 


Ícaro, tela de Chagall 





Questiono ou não os meus antepassados? 

São eu neste outro tempo modelados… 

Todo o tempo é composto de mudanças… 

ganhando ou não ganhando qualidades, 

perdendo ou não perdendo qualidades… 

Não vou dobrar o Cabo Bojador… 

Como ir além do medo? Além da dor? 

Não vou dobrar o Cabo das Tormentas… 

Perene é a tormenta, 

distante a esperança que persigo… 

Persiste à minha frente o Cabo Não, 

num desafio instante e perigoso… 

Herdeiro sou de fastos e misérias, 

aos ombros trago o Tudo, trago o Nada, 

o vinho e o pão da minha mesa efémera… 

Os passos que já dei 

não voltarei a dar… 

Ninguém banhar-se pode duas vezes 

nas mesmas águas deste nosso rio… 

Tinha toda a razão o velho Heráclito! 

Aqui e sem negar-me tento ser 

o impulso a projectar-me para diante. 

Memória do que fui, a minha história, 

outra não tenho para me contar… 

São fastos, são misérias, são heranças 

que herdei dos outros eus que fui inteiro… 

Mantenho ou não a glória desses fastos? 

Corrijo ou não a dor dessas misérias? 

Venha o primeiro justo condenar-me! 

Venha a primeira pedra castigar-me! 

Depois de mim que venham outros eus 

justificar-me ou não 

ou redimir-me ou não… 



José-Augusto de Carvalho 
27 de Novembro de 2018. 
Alentejo * Portugal 

sexta-feira, 28 de setembro de 2018

13 - NA PALAVRA É QUE VOU..., * Eu, aqui!


NA PALAVRA É QUE VOU...
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 Eu, aqui!



Eu, português, aqui me situo:

Nesta Península europeia, banhada a Norte e Ocidente pelo Oceano Atlântico e a Sul e Oriente pelo mesmo Oceano e pelo Mar Mediterrâneo, eu sou, hoje, resultante de todos os que existiram antes de mim.

Fui ibero, quando a Península assumiu a designação de Ibéria; fui hispano quando o Império Romano decidiu designar a Ibéria como Hispânia; fui andalusi quando a dominação muçulmana chamou Al-Ândalus à velha Ibéria e à romana Hispânia; subsidiariamente, até poderei ter sido sefardita, já que a migração hebraica chamou Sefarad a esta minha muito amada e mátria península.

Não sei o que os rigorosos Historiadores pensarão do que eu digo; mas eu sei que a nostalgia dos tempos passados me leva a reclamar toda esta ascendência, para o Bem e para o Mal.

E não estou sozinho nesta nostalgia. Dos nossos tão antigos avoengos sobressai, entre outros, o lusitano Viriato, ibero e integrante da Lusitânia, chefe assassinado da resistência ao invasor Império Romano mais de um século antes da nossa era. Ora pois! Se a independência de Portugal remonta a 1.143, século XII, falamos de um ibero-lusitano que viveu e morreu (grosso modo) 1.200 anos antes de Portugal existir como país. E aqui chego à nostalgia dos tempos idos. A célebre resposta “Roma não paga a traidores” que terão recebido os assassinos de Viriato quando pretenderam receber o prémio da acção para que haviam sido aliciados está conforme as relações entre vencedores e vencidos. “Tudo como dantes, quartel-general em Abrantes”.

O Império Romano procedeu como sempre procedem os dominadores: autoridades pela razão da força, trouxeram inegavelmente saber e desenvolvimento e exploraram as riquezas naturais como proprietários que eram de facto.

“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades / ganhando sempre novas qualidades”, precisou lucidamente Luís de Camões num dos seus sonetos mais famosos.

Está estudada a romanização de muitos e muitos países que surgiram na fase pós-romana. E não tenho conhecimento de os naturais destes países reclamarem o pouco ou o muito de que se apropriou o Império Romano ou de se permitirem apodá-lo de ladrão. E o motivo é claro: conforme o tempo que se vivia, os territórios ocupados eram propriedade do ocupante.

Ao que me consta, corre por aí uma “bem-pensante” teoria de que se deve reescrever a História e, mais ainda, ler o Passado com os olhos do Presente. E assim sendo, avante o julgamento do Passado! Ora do passado mais remoto ao mais recente se reclama a evolução da Humanidade. O Presente não mais é do que o resultado das lutas evolutivas, ora ganhas, ora perdidas, lutas onde venceram ou foram vencidos aqueles que querem hoje sentar no banco dos réus do tribunal do Presente.

Nesta miscigenação actual, quem me garante que no meu sangue não há vestígios de mártires ou de verdugos, de justiceiros ou de rendidos com honra ou sem ela?

Eu, português, aqui me situo como consequência do tudo que me gerou.

Sem preconceitos, sem jactâncias nem penitências e para o Bem e para o Mal, aqui estou na afirmação do que sou, conforme o tempo que vivo.



José-Augusto de Carvalho
Alentejo, 28 de Setembro de 2018.

quarta-feira, 1 de agosto de 2018

13 - NA PALAVRA É QUE VOU... * O Ti'Ernesto



(FANTASMAS DA MEMÓRIA)
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DIÁLOGOS DE CAFÉ


O Ti’Ernesto


Finais de Julho. Também esta tarde vinha quente. E também o movimento nas ruas era quase inexistente. Não havia clientes quando o homem entrou no Café. O empregado reconheceu-o e veio ao seu encontro com um sorriso de boas-vindas. Por casualidade ou preferência, o homem escolheu a mesma mesa que ocupara havia dias. O empregado desabafou:

-- Como vê, o marasmo continua.

O homem concordou com um movimento afirmativo de cabeça e tentou desvalorizar a situação:

-- É o verão, deve haver gente de férias e a emigração tem sangrado muito estas terras pequenas. Olhe, por favor, traga-me um café e um copo de água.

O empregado foi atender o pedido e passados momentos regressou com a chávena de café e o copo de água. Enquanto o cliente açucarava a bebida, quis saber:

-- O senhor tem muita gente conhecida aqui?

O homem esboçou um sorriso e satisfez a curiosidade do empregado do Café:

-- Os mais velhos, sim; eu ausentei-me há muito e os mais novos já me escapam, mas alguns ainda consigo saber quem são pela pinta…

O empregado lançou um ah exclamativo e, satisfeito, perguntou:

-- Nesse caso, o senhor conhece o Ti’Ernesto! Ele deve ser da sua idade ou um pouco mais velho…

O homem meditou uns segundos e depois confirmou:

-- Sim, sim, conheço, ele tem uns anitos a mais do que eu, mas lembro-me muito bem dele. Como está ele, agora? Continua rijo?

O empregado do Café estava visivelmente satisfeito por o cliente se recordar do Ti’Ernesto e abriu o jogo:

-- Sabe?, eu ouvi uma história dele em período eleitoral, no tempo da outra senhora…Como as coisas eram naquele tempo! Até me custa a acreditar em muitas coisas que se contam…

O homem tentou clarificar as coisas:

-- O meu caro devia ser muito novo quando ocorreu a Revolução dos Cravos, isto no caso de já andar cá neste mundo…

O empregado, assumindo um ar grave:

-- Já era deste mundo, sim senhor, até já andava na Escola; eu nasci em 1966. E lembro-me bem do alvoroço que foi aqui no final do dia 25 de Abril… Toda a miudagem estava contente por ver os adultos contentes. Foi um dia muito bonito para todos.

Nostalgicamente, o homem confirmou:

-- Sim, foi um dia muito bonito!

E assim ficaram largos momentos pensando naquele dia distante e, porventura, pensando também nos sonhos que amanheciam naquele dia… Depois, o empregado insistiu em saber o que sucedera naquele antigo período eleitoral:

-- O senhor desculpe, mas eu gostaria de saber se aquela história do Ti’Ernesto é verdadeira ou não. É que me contaram assim: era um domingo, dia de eleições; ele estava na herdade trabalhando; ainda da parte da manhã, o patrão chegou e disse-lhe: olha, vais à vila entregar esta carta ao senhor Fulano de tal, que está a esta hora na Escola tal. Ti’Ernesto recebeu o sobrescrito e lá foi entregá-lo. O senhor Fulano de tal recebeu o sobrescrito com um obrigado, podes ir… E só dias depois alguém lhe disse: essa foi boa, oh Ernesto! Foste votar e nem deste por nada! Foste bem enrolado, grande palerma!

O homem baixou os olhos e fixou-os na chávena vazia. O empregado percebeu naquele gesto a confirmação da veracidade da história. E num desabafo:

-- Até custa a acreditar!...

O homem meneando a cabeça com tristeza:

-- É verdade, aquele tempo foi mau de mais para se acreditar. E depois, quando tudo parecia poder finalmente entrar nos eixos, veio o ajuste de contas, o silêncio, aqui cúmplice, ali resignado, e este marasmo que parece querer impor-nos um marcar passo perante a História…

O empregado repetiu o ah exclamativo, recebeu o dinheiro que pagava a despesa e olhou o homem que saía sem uma palavra de despedida.



José-Augusto de Carvalho
31 de Julho de 2018.
Alentejo * Portugal

sábado, 28 de julho de 2018

13 - NA PALAVRA É QUE VOU......* Na Linha Ferroviária do Sul


NA PALAVRA É QUE VOU...
NA LINHA FERROVIÁRIA DO SUL

 Ponte ferroviária sobre o Rio Xarrama
(Foto Internet, com a devida vénia)

1.
Todas as semanas fazia aquelas viagens nocturnas: sexta-feira à noite para baixo; domingo à noite para cima. Ia e vinha no então chamado comboio-correio. Sem pressas, este comboio parava em todas as estações e apeadeiros. Era reduzido o movimento de passageiros subindo e descendo, mas era um tanto agitado o movimento de mercadorias. Eu sempre estava atento  quando, no sentido descendente,  chegava à estação de Casa Branca: aí era a corneta anunciando a partida iminente do comboio e logo após o aviso gritado ---  partida para o Algarve! Toda a gente, respeitando a orientação Norte-Sul, dizia vou para cima ou vou para baixo.
Nas noites de luar, quando em sentido descendente, eu ficava olhando o exterior, logo à saída da Estação Ferroviária de Casa Branca. Sentia um fascínio muito grande pela ribeira de Papa Galos e pelo rio Xarrama. Daí o meu persistente desejo de ver e rever as suas águas quando o comboio os cruzava. A ribeira de Papa Galos, cujo curso vai de Ocidente para Oriente, é afluente do rio Dgebe e este é afluente do  Odiana, o meu muito amado Odiana, rio mítico onde mais tarde seria construída uma barragem que é ou será o maior lago artificial da Europa --- a Barragem de Alqueva. A Barragem de Alqueva é uma das esperanças de uma significativa área do Alentejo devido à irrigação que pode proporcionar. O Xarrama corre de Nordeste para Ocidente e é afluente do Sado, rio inteiramente transtagano, que vem da Serra da Vigia, a Sul, e faz o seu trajecto para Norte até mergulhar no Oceano na nossa perdida Setúbal. E digo nossa perdida Setúbal como cidadão transtagano. Esta linda cidade marítima foi extorquida ao Alentejo, vá lá o Diabo saber o porquê, mistério insolúvel / aberração instalada que parece ninguém incomodar, da lavra de iluminado(s) que não sei identificar --- ah, as coisas que eu não sei! --- até porque Setúbal continua capital de um distrito que inclui vários municípios transtaganos.
No sentido ascendente, quando regressava a Lisboa, sentia o mesmo fascínio pelas águas. Quando o comboio partia da estação de Viana, eu ficava esperando pelo Xarrama. Tantas saudades daquelas águas, nas quais ensaiei as primeiras braçadas da minha incipiente condição de nadador e alimentei o meu sonho irrealizado de marinheiro!  Logo a seguir à estação de Alcáçovas, lá estavam as águas da Papa Galos me esperando…

2.
Dizia-me um amigo e primo já falecido: oh, parente, tu tens uma situação mal resolvida com o Guadiana e tanto assim que insistes em chamar-lhe Odiana.
Eu olhava-o, sorrindo. Quando ele nasceu, eu tinha quase dez anos. Andei com ele ao colo. Ele sabia o muito carinho que eu tinha por ele. E pacientemente eu lhe respondia sempre o mesmo: parente, tu sabes que eu tenho uma predilecção por Espanha. Tanto assim é que, em Espanha, eu nunca me senti estrangeiro, apenas sinto estar numa terra vizinha da minha. Afinal, para cá dos Pirenéus, nós somos todos iberos ou hispanos e muitos outros de nós ainda sefarditas e/ou andalusis,  mas eu não gosto nada de imposições e submissões. Em Portugal temos várias palavras com a mesma raiz: Odiana, Odeleite, Odemira, Odivelas, etc. E diz quem sabe dessas coisas da etimologia que a palavra árabe Uad (curso de água) entrou no português como Ode e no castelhano entrou como Guad. Em rigor, o português Odiana ou o castelhano Guadiana significa Rio Ana.  E também sabemos que a palavra castelhana Guadiana entrou (à força?) no idioma português depois de 1580, data em que perdemos a independência. Ora, eu até posso entender que durante os sessenta anos de soberania espanhola tivesse ocorrido esse desmando, mas já não entendo o porquê desse desmando de soberania espanhola prosseguir e se enraizar desde que recuperámos a independência nacional, em 1640. Passaram centenas de anos e continuamos assumindo uma palavra estranha e simultaneamente desprezando e relegando para o arquivo dos arcaísmos a nossa muito nossa palavra Odiana.

3
Os anos passaram. Agora, definitivamente nas pátrias terras transtaganas, mais só e chorando as perdas inerentes à nossa condição de existência efémera, perco-me e encontro-me nas recordações. Sei que sem memória nada somos, sei-o por experiência. Igualmente sei que muita gente vai considerar saudosista este texto e outros semelhantes. Não penso assim. Textos deste género apenas fixam no papel momentos de uma existência. Momentos merecedores de respeito, de compreensão e consideração, pela meridiana razão de que a vida merece respeito, a vida em si mesma. O que fazemos da vida ou o que fazemos na vida são patamares diferentes, estes passíveis de outras leituras, de outras interpretações, de outros juízos de valor.

José-Augusto de Carvalho
28 de Julgo de 2018.
Alentejo * Portugal


quarta-feira, 25 de julho de 2018

13 - NA PALAVRA É QUE VOU... * O forasteiro



Diálogos de Café
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O forasteiro


Entrou e sentou-se a uma mesa próxima da porta de entrada do Café. Discretamente, circunvagou o olhar, num reconhecimento rápido, e esperou ser atendido. O empregado aproximou-se e disse, como era de uso: faz favor de dizer. O homem olhou o empregado e pediu: um café e um copo de água, por favor.
Enquanto esperava, observou a rua quase sem movimento àquela hora. Eram quatro da tarde e o sol de Julho ainda ardia. Se o dia tem vinte e quatro horas, em rigor eram dezasseis horas. Não sei deveras por que dividimos o dia em manhã e tarde, mas dividimos e por isso mesmo dizemos quatro da manhã ou da madrugada e quatro da tarde. Ora pois, o Povo é quem faz a língua. O que mais importa é que esteja tudo certo e que nos entendamos.
Sentados a uma outra mesa, dois clientes comentavam a transferência de um futebolista: Dizem que o país vai mal, mas os clubes gastam milhões em contratações. E o mais estranho é que os doentes da clubite não reclamam por salários justos, mas consideram muito natural esta indecência.
Insulto, queres tu dizer, corrigiu o outro. E em contratações, em salários, em prémios…
Verdade, confirmou o primeiro. É só quando um braço de trabalho pede aumento de salário que o patrão e o ministro falam em crise e na tal concertação que nada concerta nem conserta nem harmoniza e só  provoca a divisão sindical, a tal divisão para reinar. E, no final de um arremedo de controvérsia, concluem sempre o mesmo: quando o mar bate na rocha, quem se lixa é o mexilhão.
Estavam de acordo. Difícil era não estarem. Esgotada a conversa ou por afazeres que os reclamassem, pagaram a despesa e saíram.
O empregado acercou-se e quis saber: o senhor está de passagem? Aos dias de semana é isto que vê, não há movimento.
O homem esboçou um sorriso e respondeu: Sim, estou de passagem. Há muito que não vinha aqui. E vejo que tudo está na mesma, poucas ou nenhumas mudanças. Está tudo muito parado e barco parado não faz viagem.
O empregado encolheu os ombros com desânimo e interrogou-se: antes era o que era e agora é o que é…  até há quem afirme que vamos ser um país de serviços, como se algum país conseguisse sobreviver sem agricultura, sem indústria, sem pescas e sei lá que mais!… É isto: antigamente ainda se fazia alguma coisa, agora compramos tudo feito… O senhor ouviu aqueles dois clientes que saíram agora? Eles falam e têm razão, mas não chega ter razão. E quando há jogos na cidade, fazem um sacrifício e lá vão eles ajudar  a alimentar o desaforo que aí vai! Mal vai a coisa quando a bota não dá com a perdigota, que é como diz criticam aceitando ou aceitam criticando. O senhor entende isto?
O homem esboçou um gesto vago e devolveu a pergunta: quem entende isto? Nem sei se é para entender, mas a realidade que temos é esta. Qualquer interrogação parte duma situação concreta. É um passo em frente uma pessoa questionar e questionar-se, mas se se ficar pela interrogação, isto é se não der o segundo passo que será o de transformar ou tentar transformar ou ajudar a transformar a situação questionada de que adianta questionar? Alguém escreveu, não me lembro do nome do autor desta frase: o povo parece um cão que ladra muito, mas morde pouco. E não se trata de um apelo à violência, se bem entendo o alcance da frase. Eu interpreto-a como um apelo à firmeza, a uma atitude de consciente cidadania. E isto porque um cidadão consciente conjuga o pensamento com a postura, porque só ambos se completam.
Deve ser como diz, sim, consentiu o empregado.
Levantando-se, o homem  despediu-se: Agora tenho de ir. Quanto devo? Tenha uma boa tarde.


José-Augusto de Carvalho
25 de Julho de 2018.
Alentejo * Portugal


sábado, 24 de março de 2018

13 - NA PALAVRA É QUE VOU..., * A fisga



(Histórias de um tempo perdido para sempre) 


A fisga 



O Lourenço jogava ao berlinde e ao pião, como todos os rapazinhos da sua idade, mas não usava fisga. Um dia, quando regressavam da Feira anual, um seu colega de Escola, o Anastácio, quis saber:

--- Lourenço, por que não usas fisga?

A resposta foi seca:

--- Não uso porque não quero.

Anastácio não aceitando a resposta como esclarecedora, insistiu provocante:

--- Tu não sabes atirar, é por isso que não tens uma fisga.

Lourenço olhou interrogativamente o colega e precisou:

--- Eu não disse que não tenho uma fisga, eu disse que não uso fisga.

Anastácio ficou calado, perplexo. E Lourenço, friamente, clarificou:

--- Tu perguntaste por que não uso fisga e não se eu tenho uma fisga.

Anastácio compreendendo o ardil em que caíra, tentou sair dele com um desafio:

--- Se tens fisga, sabes atirar como nós sabemos…

Lourenço acenou que sim com um movimento de cabeça.

Nesta altura da conversa todos pararam na expectativa do que se adivinhava. E o que se adivinhava chegou quando Anastácio lançou o repto:

--- Se sabes atirar, vamos ver qual de nós dois tem melhor pontaria.

Lourenço encolheu os ombros, com indiferença.

Anastácio concretizou o repto:

--- À melhor de cinco fisgadas. Quem perder tem direito a desforra. Se houver empate, uma terceira série de cinco fisgadas decide o vencedor.

Todos concordaram à excepção de Lourenço que de novo encolheu os ombros num sinal evidente de indiferença.

Foi fácil a escolha de um alvo --- uma rolha de cortiça colocada numa das muitas fendas de um muro não rebocado de uma horta. Os atiradores alvejariam a rolha a vinte passos de distância.

Lourenço propôs usar a fisga de Anastácio para ficarem ambos em total igualdade. A proposta foi aceite. Por sorteio, Anastácio seria o primeiro a alvejar a rolha.

Pouco demorou a recolha de projécteis, pequenas pedras escolhidas no chão, arredondadas e de dimensão um pouco inferior â de um berlinde.

Anastácio era conhecido de todos como um bom atirador de fisga; Lourenço era para eles um grande ponto de interrogação; não tinham memória de o ter visto com uma fisga na mão.

Anastácio cumpriu a primeira série de cinco fisgadas. Acertou quatro vezes. Era um bom resultado.

Todos os olhares se concentraram curiosos em Lourenço. Que iria suceder?

Lourenço acertou as primeiras quatro fisgadas e olhando fixamente Anastácio disse:

--- Pronto, empatámos.

Surpreendidos, todos disseram:

--- Lourenço, ainda te falta uma fisgada…

Lourenço encolheu os ombros e justificou:

--- Pode ser, mas eu devo errar a rolha, não vale a pena arriscar. Está bom assim, empatámos.

Anastácio ficou apreensivo. Afinal, Lourenço o surpreendera. Era um bom atirador de fisga e agora até recusava a possibilidade de vencer; mas a sua ânsia de superação prevaleceu e aprestou-se para a segunda série de fisgadas.

Uma dúvida assaltou os demais colegas: seria que Lourenço não queria perder mas também não queria ganhar para não desgostar Anastácio?

Os dois atiradores ocuparam os seus lugares para a segunda série de fisgadas.

Anastácio repetiu o resultado. Errou de novo a primeira fisgada e acertou as quatro restantes.

Havia ansiedade evidente em Anastácio e um mal-estar contido nos demais.

Lourenço atirou certeiramente quatro vezes e entregou a fisga a Anastácio.

--- Toma lá a tua fisga. Já chega de fisgadas, ficámos empatados.

Todos ficaram calados, excepto Anastácio, que protestou:

--- Quem desiste, perde!

Calados, os colegas adivinhavam situação desagradável. Lourenço sossegou-os ao se dirigir ao adversário com um sorriso:

--- Está bem, Anastácio, tu ganhaste, és um bom atirador. Podes levar a taça.



José-Augusto de Carvalho
Alentejo, 24 de Março de 2018.