quinta-feira, 26 de outubro de 2017

11 - O MEU RIMANCEIRO * De jornada



O MEU RIMANCEIRO

(QUE VIVA O CORDEL!)


De jornada






Perguntas-me se eu vou na contramão…

Entrei na via de único sentido

apenas, podes crer, por distracção.

Que pena eu ser assim tão distraído.



Mas, à cautela, já saí da via…

Quem nesta vida andar por distracção,

arrisca-se a entrar na romaria,

ainda que sem fé nem devoção.



De alforge e de cantil e de cajado,

sem bússola estelar, cá vou sozinho.

Apenas tenho os astros por telhado

e o longe que me acena por caminho.



E se vou ter ou não a alegria

de ao longe que me acena além chegar,

não sei, mas sei que certa é esta a via

e por agora que me baste ousar.







José-Augusto de Carvalho

Alentejo, 26 de Outubro de 2017.

sábado, 7 de outubro de 2017

03 - ESTA LIRA DE MIM!... * Declaração


Declaração




Não convoco favores de musas

nem sublimes acordes de Orfeu.

Sem assomos de ingratas recusas,

digo apenas, aqui, que sou eu.

Venho só, sem escudo nem lança,

sem ardores de raiva e vingança.



Não ensaio nenhum madrigal

nem as ninfas acordo nas fontes.

Já morreram no meu laranjal

os virgínios adornos das frontes.

Que ficou do que Amor concebeu?

Em que incêndios profanos ardeu?



Em caminhos inóspitos ando,

sem alforge de magro sustento.

Só as aves, em lúdico bando,

cantam hinos de audaz movimento,

acrobatas sem medo nem rede…

…e eu no chão a morrer-me de sede!



Não acuso os arroios calados

nem receio o matiz dos assombros.

Cada passo de passos mal dados,

mais a carga me pesa nos ombros.

Subo ao cume do monte num rito

de ganhar o horizonte infinito.



Entre perdas e ganhos encontro

discernível o saldo de mim.

Oxalá que nenhum desencontro

de mais pese nas contas do fim!

E de contas saldadas e em fumo,

seja o céu o meu último rumo.



Simulacro de inútil história,

nada importa ao devir que se apronte.

Seja viva e perene a memória

da futura manhã que desponte.

Seja Amor a plantar laranjais

que floresçam rubis virginais.





José-Augusto Carvalho

Alentejo, 7 de Outubro de 2017.


quinta-feira, 5 de outubro de 2017

13 - NA PALAVRA É QUE VOU..., * Definitivamente


NA PALAVRA É QUE VOU...


Definitivamente


Nesta transitoriedade em que vou, chegou o tempo de parar e ponderar:

o que fui e não fui;
o que sou e não sou neste efémero presente;
o que pretendo e não pretendo de mim;
o que os demais podem pretender e não pretender de mim. E que me afecta os demais nada pretenderem de mim? E que posição tomarei se os demais pretenderem e exactamente o quê de mim?

O Amanhã é futuro incerto e finito, porque toda a longevidade é relativa.

O balanço do passado é difícil: das entregas às hesitações; da satisfação do dever cumprido ao infortúnio efémero ou infortúnio duradouro; do encanto e do desencanto, tudo somado é um rosário de contas a desfiar pacientemente nas noites longas da invernia que se aproxima.

Sem dramatismo nem renúncia --- nunca digas nunca! ---, estou ou suponho estar preparado para o que vier. E não é jactância, é uma legítima convicção ou uma legítima defesa.

Na minha idade, é tolice sentir medo ou pretender engalanar mais ainda a feira das vaidades. Recordo o ditado: as modas e as vaidades são o delírio dos medíocres e dos tolos e o pesadelo dos sábios. Não que eu seja sábio, mas esforço-me por seguir os seus exemplos e preservar os seus ensinamentos.

Na minha idade, sorrio-me quando ouço a melopeia sedutora das sereias; sorrio-me também dos impenitentes que fazem a festa, lançam os foguetes e ainda têm fôlego para ir recolher as canas. São uns valentes!

Na minha idade, estou mais exigente. Já não tenho tempo para reparar asneiras ou para delas me penitenciar, para tolerar impreparações, para subscrever simulacros de boas intenções. Exactamente por isto mesmo, saber dizer não é uma qualidade.

Na minha idade, o tempo é de balanço, é de resultados, é o tempo de declarar Aqui está a colheita que recolhi, depois assinar e datar. O que suceder depois, de bom ou de mau, será da responsabilidade de quem decidiu.

Como todos os demais, espero sem sobressaltos o juízo da História. Até porque não nos cabe qualquer intromissão em causa própria, não nos cabe nem os outros permitiriam tamanho desaforo… e muito bem.

Nunca fui adepto da pena da Talião e apercebi-me há muito de que as “regras do jogo” estão viciadas. Em minha defesa apenas uso, e me basta, o rifão: “Deus manda ser bom, mas não manda ser parvo.”

Até sempre! 

José-Augusto de Carvalho

Alentejo, 30 de Agosto de 2017.

terça-feira, 3 de outubro de 2017

16 - NA ESTRADA DE DAMASCO * Nihil sine causa


NA ESTRADA DE DAMASCO
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Nihil sine causa (1)






...e levo a vida a perguntar por mim!

Em vão insisto, mas ninguém responde.

Pergunto, apenas, por que um dia vim

e por que a causa assim de mim se esconde.



Da causa obscura eu só conheço o efeito:

é esta dor moendo até mais não!

Que coração aguenta ser no peito

tão-só um tique-taque sem razão?



Que sonho ou pesadelo a Vida quer?

Que dívida de ser em mim perdura?

Do ignoto caos nem consegui sequer,

para a merenda, uma romã madura.



Desamparado e nu, assim cheguei.

Sorrindo, minha mãe, num terno enlevo.

Nos braços maternais me aconcheguei.

Que dívida a pagar? Eu nada devo!



O maternal carinho não esqueço.

Está perdido nos confins do nada.

Nesta viagem de ida e sem regresso,

com minhas mãos rasguei a minha estrada.



Amei e fui amado --- estou sozinho.

De pé, sem medo, espero ouvir agora

em uma encruzilhada do caminho

dobrar por mim a Torre da Má Hora.



E lá irei dormindo de viagem,

sem perceber que causa quis que eu fosse. 

E levarei o nada na bagagem,

o mesmo nada que do caos eu trouxe.


*

(1)- nihil sine causa (locução latina) -- Nada existe sem uma causa.
 Fonte: Cícero, De Finibus, I, 19.

*

José-Augusto de Carvalho
Alentejo, 3 de Outubro de 2017.

11 - O MEU RIMANCEIRO * A inércia não existe!



O MEU RIMANCEIRO
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(Que viva o cordel!)

*

A inércia não existe!





Adoptaste o modelo acabado

que anunciam, na praça, os arautos.

Neles crêem talvez os incautos

e deveras os bem instalados.



Mas o tempo recusa parar,

num vaivém de alcatruzes de nora

que descendo é a angústia que chora,

que subindo é o alvor a cantar.



Movimento perpétuo da vida,

de mudança em mudança prossegue.

E não há quem recuse ou quem negue

esta Lei que é de todos sabida.



O passado previu o presente,

o presente prevê o futuro.

Sob a terra, no húmus obscuro,

vigorosa, germina a semente…



Sempre assim, de mudança em mudança,

cada fim anuncia um nascer.

A verdade perene de ser,

desbravando caminhos, avança.





José-Augusto de Carvalho
Alentejo, 3 de Outubro de 2017.