sábado, 21 de dezembro de 2019

25 - LIVRO TEMPO DE SORTILÉGIO * O derradeiro mito

LIVRO TEMPO DE SORTILÉGIO

*

O derradeiro mito






O Sol declina morno --- fim de tarde.

É tempo de vindimas --- cheira a mosto.

Há um rubor sagrado no teu rosto.

Teu corpo abandonado dá-se e arde.


Prosterno-me a teus pés e sou um círio

que um sacrifício de alma e luz consome.

Meus lábios balbuciam o teu nome

que dulcifica o fel do meu martírio...


Eu sei que vou morrer assim por ti.

Que dádiva dos deuses mereci

de em fumo me cumprir --- de ser o eleito!


Que importa agora quanto foi escrito?

Seremos nós o derradeiro mito...

...este princípio e fim mais que perfeito!



José-Augusto de Carvalho 
Alentejo, Dezembro de 2019.

domingo, 20 de outubro de 2019

13 - NA PALAVRA É QUE VOU... * Falando de dores



NA PALAVRA É QUE VOU… 

Falando de dores 







Hoje, tentemos conjugar o verbo doer…

Qual será o significado do lamento: estou com uma dor de dentes difícil de suportar?

Afinal, uma dor de dentes é um problema que o Serviço Nacional de Saúde (mal)trata e de que a odontologia privada se ocupa se ou quando a disponibilidade do meu salário mo permite. Assim, tal qual – quem quer saúde, paga-a!

Evidentemente que a dor de dentes é um exemplo entre todas as outras dores que nos afligem ou nos podem afligir enquanto caminhamos nesta viagem finita em que vamos…

… vamos, muitos cantando e rindo;

… vamos, muitos encarando a viagem como uma via profana (via crucis reduzida à dízima);

… vamos, muitos sem darem por nada, numa acomodação mísera e mesquinha (e aqui te evoco, meu amado Luís, mais uma vez);

… vamos, outros ainda, mas poucos, muito poucos, esbracejando ou esbravejando;

--- vamos, uns tantos proclamando serem do contra porque é bonito ser contestatário ou porque lhes convém inocuamente lavarem a consciência…

.

Vejamos:

-- eu sei que pago os meus Impostos;

-- eu sei que sou, desde o velho Adão, obra do Criador, logo eu e todos os demais pertencemos à única Irmandade --- a Irmandade Humana;

-- eu sei que a Mãe Eva e o Pai Adão mal se comportaram cometendo o pecado da desobediência e, por isso mesmo, foram expulsos do Paraíso, passando eles depois as passas do Algarve e outras mais… e que no-las deixaram de herança até hoje, numa penitência de longevidade que me assombra; mas tudo bem, a misericórdia do Criador é infinita;

-- eu sei que a nossa Leonor, filha do Duque de Beja, depois rainha, após o casamento com o Príncipe Perfeito, o nosso Dom João II, Rei de Portugal de perene memória apesar das aleivosias de muitos, criou as Misericórdias, obra modesta e, avento eu, paroquialmente inspirada na misericórdia infinita;

-- eu sei que os Direitos Humanos dizem defender-me;

-- eu conheço a Declaração Universal dos Direitos do Homem (ONU, 1948);

-- eu conheço os direitos constitucionais do cidadão português;

-- eu suponho saber ler, mas quanto mais leio, mais me parece que vivo um equívoco:

-- eu suponho saber escrever (cartas à família e pouco mais…), mas quanto mais escrevo menos leitores tenho; mas entendo isto: o silêncio mata, logo eu sei que me estão matando… E aqui eu sorrio divertido: não percam tempo querendo matar-me!… a Senhora Dona Morte (olá, Florbela, minha amada) não vai cometer a maldade de se esquecer de mim…

Até sempre!

*

José-Augusto de Carvalho
20 de Outubro de 2019.
Alentejo * Portugal

quinta-feira, 10 de outubro de 2019

13 - NA PALAVRA É QUE VOU... * A Direita e a Esquerda



NA PALAVRA É QUE VOU...
.
A Direita e a Esquerda


Diz quem sabe dessas coisas da História que as tais Direita e Esquerda surgiram com a Revolução Francesa. A tal Grande Revolução Burguesa que, em 1789, em França, apeou a Realeza, a Nobreza e a Igreja Imperial de Constantino. Foi nessa data e com o decisivo empurrão do povo ignorante e faminto que a Burguesia tomou o Poder.
Os Girondinos eram a Direita, os direitícias; os Jacobinos eram a Esquerda, os esquerdícias.
O Poder da Burguesia trouxe consigo a divisa Liberdade * Igualdade * Fraternidade. Para eles, burgueses, apenas para eles, é claro.
A Burguesia trouxe o Capitalismo, mais direitícia, mais esquerdícia, sempre Capitalismo.
As amarguras do povo mantiveram-se. Apeados os Senhores das Linhagens, subiam ao palanque os Senhores do Lucro. Enfim, como diz o rifão: «Tudo como dantes, Quartel-General em Abrantes»! Há quem prefira estoutra sentença: «A m... é a mesma, as moscas é que são outras».
Evidentemente que o Poder da Burguesia foi um passo qualitativo no decurso da História dos Homens. Foi e já não é há muito tempo.
Com a chamada Idade Industrial, ficou muito clara a importância da força de trabalho, isto é, do povo. E com esta peça nova no xadrez, o povo como força de trabalho, surgiram os inevitáveis conflitos entre patrões e trabalhadores assalariados e as ideias destes conducentes a um dia se emanciparem do Poder Burguês.
Enquanto isto, os direitícias e os esquerdícias iam-se revezando na condução dos destinos das gentes. Ora governavam uns, ora governavam outros, ora, num lindo par, governavam juntos. E tão bem ficavam no par, que o povo, sempre criativo, inventou esta máxima: «São tão lindos, tão lindos, que Deus os fez e Deus os juntou!» 
E com a criação deste par, os direitícias e os esquerdícias «inventaram» o Centro. Foi aí que este pariu os centrícias. 
Depois, decidiram criar outras combinações, mas sem jamais se desviarem um milímetro da sua matriz: Poder da Burguesia. Aliás, teremos de convir que nada de diferente seria de esperar. Se deixassem de ser o que são, perderiam a sua identidade. E isso é o que eles não querem. Pudera!
De entre outras, uma interrogação o povo se coloca: Por que será que os que se dizem do povo e eleitos pelo povo estão reclamando para si a designação de esquerdícias? Por que sentem a necessidade de procurar no Poder da Burguesia uma palavra que os defina? A palavra que define o Poder do Povo não lhes agrada? Pois eu proclamo ser um democrata, porque defendo a Democracia, a tal expressão grega que significa Poder do Povo ou Poder Popular.
Direitícias, Esquerdícias, Centrícias e por aí adiante são as negaças de que se serve a Burguesia para caçar os distraídos...


José-Augusto de Carvalho
1-11-2006.
Alentejo * Portugal

quinta-feira, 26 de setembro de 2019

03 - LIVRO ESTALIRA DE MIM!... * O lado obscuro da História


O lado obscuro da História 





De soluços me chega, entrecortada, 

a saudade chorada que me cantas. 

Do desterro cruel a voz levantas, 

no silêncio da noite abandonada. 



Na memória do tempo, a melopeia 

é um raio de luz a consolar 

esta angústia sem prece nem altar 

que num auto-de-fé nos incendeia. 



São saudades de nós -- de ti, de mim… 

…quando, louco, o tapete que voava 

pelos ares infindos nos levava, 

sonhando as fantasias de Aladim! 



Personagens intemporais e avulsos, 

hoje, somos, nos livros infantis… 

Por que nenhum autor dos livros diz 

que nós do pátrio chão fomos expulsos? 



Do al-Andalus, de Sefarad fomos, 

em aras e desterro, os excluídos… 

Do silêncio a que fomos reduzidos, 

gritamos porque ainda vivos somos! 





José-Augusto de Carvalho 
25 de Setembro de 2019 
Alentejo * Portugal

quarta-feira, 14 de agosto de 2019

03 - LIVRO ESTA LIRA DE MIM!... * O afã da procura


O afã da procura 






Caminheiro tenaz, perpétuo movimento, 

eu vou e, aqui e além, desvendo e me desvendo. 

Que bom, mesmo que doa angústia ou sofrimento, 

se, a cada instante, for o ser que esteja sendo! 



Que eu saiba recusar a inércia sufocante 

que quer empedernir a lava do vulcão 

e seja, em cada transe, o alor determinante 

da rútila manhã duma revelação! 



E que no fim da minha efémera jornada, 

regresse ao nada, sem remorso nem censura, 

porque rasguei em cada aclive a minha estrada 

e me cumpri no afã instante da procura… 



De herança, apenas deixo esta inquietação 

da lava onde não morre o fogo do vulcão. 





José-Augusto de Carvalho 
13 de Agosto de 2019. 
Alentejo*Portugal 


domingo, 30 de junho de 2019

03 - LIVRO ESTA LIRA DE MIM!... * Vento suão



Vento suão 






Vem o vento suão da fornalha de Hefesto, 

na Mãe África. Traz um rubor de artifícios 

e uma mescla de anéis de ancestrais malefícios 

que a bigorna forjou num desígnio funesto. 



Traz os gritos que a dor arrancou da raiz 

e morreram no mar do perpétuo desterro… 

Traz a cruz que de novo agoniza no cerro 

e calada, no horror sem perdão, tudo diz… 



Traz o medo do incréu num juízo final, 

onde o ser e o não-ser se debatem convulsos… 

Traz o verbo na luz sem grilhetas nos pulsos 

e a partilha do pão num sagrado ritual… 



E eu aqui neste chão que foi berço e regaço 

esperando por mim para o último abraço. 





José-Augusto de Carvalho 
29 de Junho de 2019. 
Alentejo * Portugal

sexta-feira, 21 de junho de 2019

03 - LIVRO ESTA LIRA DE MIM!... * Traço de união


Traço de união 





Escavo os subterrâneos da ausência 

em busca de vestígios e de escombros 

que jazem nos covais da decadência, 

ornados de mistérios e de assombros… 



Ossadas que me dizem ser o nada 

que resta do que foi vivido outrora… 

Memória sem memória, abandonada, 

e que nenhuma lágrima hoje chora… 



Escavo e não encontro nem um grito, 

um eco de algum ai aqui que diga 

eu sou de ti, ainda que proscrito, 

a génese perdida, a mais antiga… 



E não me deves nada, nem a prece 

que no recolhimento se murmura… 

Em ti, apenas, sou quem permanece, 

quem vai contigo, quem contigo dura… 



Agora que de mim não há mais nada, 

pára de procurar --- já tudo viste. 

E cumpre-te semente germinada, 

que tudo o que já foi em ti existe… 



Atónito, descubro que Sibila 

me trouxe a mítica revelação: 

que nem a morte que nos aniquila, 

destrói o nosso traço de união. 




José-Augusto de Carvalho 
19 de Junho de 2019. 
Alentejo * Portugal

domingo, 16 de junho de 2019

28 - CLAVE DE SUL * Companheiro


(CLAVE DE SUL)

*
Companheiro… 





(À memória de Joaquim Soeiro Pereira Gomes)




Tu sabias, 

sabias desde o berço, 

que o pátrio chão está por resgatar… 



Tu sabias, 

sabias da pertença 

da futura seara por ceifar… 



Tu sabias, 

sabias por que a fome 

maior é sempre a fome da esperança… 



Tua sabias, 

sabias que tão pouco iam durar 

teus tempos de criança… 



Tu sabias, 

sabias que eras mais um entre os tantos 

privados do seu tempo de meninos… 



Tu sabias, 

sabias como eu sei que vamos juntos 

contra as vivas marés dos desatinos… 



Tu sabias, 

sabias, como eu sei, 

que a gente cai e a gente se levanta… 



Tu sabias 

e sabes, como eu sei, 

que o canto da sereia não nos perde, 

não nos seduz, 

não nos encanta…. 




José-Augusto de Carvalho 
15 de Junho de 2019 
Alentejo * Portugal

terça-feira, 4 de junho de 2019

16 - NA ESTRADA DE DAMASCO * Assumpto


NA ESTRADA DE DAMASCO
.
Assumpto





Carrego, desde a queda, a maldição de expulso.

Do mito que não fui à pena de banido, 

a minha condição assumo em cada impulso 

de ousar o desafio e dar-me algum sentido. 




Os passos que já dei! Memória das estradas 

de um tempo em construção. Derramo o sangue rubro 

na aras das manhãs de angústias orvalhadas 

onde sem medo sou e vivo me descubro. 




E cada descoberta é uma porta aberta… 

E, em cada porta aberta, o mesmo desafio 

dizendo-me que sou assim desde o começo… 




Imensa, a dimensão do todo me liberta. 

Do círio ardendo sou telúrico o pavio 

onde sem mito nem grilhão me reconheço. 





José-Augusto de Carvalho 
4 de Junho de 2019. 
Alentejo * Portugal

segunda-feira, 20 de maio de 2019

13 - NA PALAVRA É QUE VOU... * Os descaminhos


NA PALAVRA É QUE VOU…

*
Os descaminhos


Uma estrada de cem léguas começa por uma passada…
Um incêndio pode começar com uma faúlha…




O futebol profissional é um espectáculo como outro qualquer. Os estádios se emolduram de povo e os artistas exibem os seus dotes no relvado.
A diversão é salutar e desde há muito que as sociedades humanas organizadas propiciam ao povo espectáculos lúdicos. Até porque nem só de pão vive o ser humano…
Há espectáculos lúdicos ou de outra natureza que provocam emoções, sabemos disso; mas também sabemos que o ser humano tem o dever de controlar as suas emoções por um imperativo de cidadania.
O atropelo de noções básicas de convivência gera situações de conflito que deterioram o ser e estar da comunidade.
A sociedade organizada tem meios legais para se reclamar de uma qualquer situação que se nos apresente como injusta. Afinal, vivemos num Estado de Direito.
É ilegítima a reacção insultuosa e/ou caluniosa, seja para com os nossos semelhantes, seja para com instituições públicas ou privadas.
Uma sociedade civilizada tem o dever de saber defender-se, de saber respeitar-se, de saber fazer-se respeitar…
A foto que ilustra este texto, é só mais uma gota do oceano de discórdia onde perigosamente parece querermos mergulhar.
Sem animosidade, mas preocupado com a sociedade onde vivo, uso do meu direito elementar de cidadão para opinar
.
Nota: Foto do jornal O Jogo, com a devida vénia.

*
José-Augusto de Carvalho
19 de Maio de 2019.
Alentejo * Portugal.

terça-feira, 7 de maio de 2019

13 - NA PALAVRA É QUE VOU... * A instante interrogação

NA PALAVRA É QUE VOU...

*
A INSTANTE INTERROGAÇÃO




Para além dos múltiplos deveres e direitos do quotidiano, para além do convívio social dito civilizado do mesmo quotidiano, para além dos afectos, a nossa vida é a instante interrogação de nós mesmos e de tudo o que nos perturba e nos reduz ao desconforto ansioso do real que intuímos e à utopia que perseguimos.
Passamos pela existência de outrem e deixamos ou não memória de nós; passam pela nossa existência e deixam ou não memória da sua passagem. E quando a memória não é perene, poderemos ou não citar Lavoisier? Nada se cria, nada se perde, tudo se transforma… (cito de cor).
Se, por um motivo ponderável ou não, nos ausentamos, o convívio social dito civilizado já referido sentiu a nossa ausência ou continua imperturbável? Será que, perante a nossa ausência, indiferente sentencia só fazem falta os que estão?
Certa vez, uma pessoa me falava incomodada de alguém que experimentava o outro. Experimentava na acepção de testar, sublinho. Confesso que fiquei surpreendido e ainda hoje assim continuo. Não tenho a pretensão de molestar quem pensa diferente, mas vejamos:
1- Como me parece adequado, comecemos pelo "princípio". Sim, princípio em itálico. Tenho por certo que pouco ou nada sabemos do Princípio e pouco ou nada saberemos do Fim. Aqui vamos neste nosso tempo fazendo os possíveis e sonhando os impossíveis para chegarmos inteiros ao fim da efémera jornada. Ora bem, o mito do Eden é claro: Deus testou ou experimentou Adão e Eva com o fruto proibido. E, que me conste, ninguém molesta Deus por isso.
2- Quando o outro é testado numa prova qualquer, também ninguém ergue a voz protestando.
3- Quando sondamos o outro no sentido de sabermos se contamos ou não com ele para um objectivo qualquer, estamos testando a sua (in)disponibilidade.
4- Quando criamos uma expectativa do outro, alguns indícios dele conhecemos ou supomos conhecer e esses indícios pressupõem um teste indirecto.
Afinal, qual de nós não testa o outro?
Colocado quanto antecede, a conclusão parece evidente: a nossa existência é uma interrogação permanente de nós mesmos perante o outro porque só no outro poderemos encontrar-nos ou não e assim nos cumprirmos ou não.
*
José-Augusto de Carvalho.
Alentejo* Portugal

terça-feira, 19 de março de 2019

13 - NA PALAVRA É QUE VOU... * Saudade


NA PALAVRA É QUE VOU...
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S a u d a d e 



É um dia abrasador de Julho. O quintal ganha os contornos duma fornalha. Ao fundo, corre a rua empinada. São duas horas da tarde. Sonolenta, a vila estiraçada ao sol. Nem viv’alma. As cigarras cantam, ensurdecendo tudo e todos, esquecidas ou ignorantes da fábula. 

Maria sai da cozinha com um alguidar de roupa lavada. Com a destreza da experiência dos anos, começa a dependurá-la na corda que atravessa o quintal de topo a topo. Com este calor, daqui a nada estará seca, murmura de si para si. 

Soa a aldraba do portão que dá para a rua empinada. Maria grita lá vou… e vai abrir o portão. É a filha que chega de Évora, vem afogueada e protesta: 

--- Que calor, mãe! Passa dos quarenta graus! E a camioneta da carreira é uma frigideira! 

Maria encolhe os ombros resignada e corrobora o protesto: 

--- Este maldito verão é sempre assim, filha! O expresso para Lisboa tem ar condicionado, mas as carreiras, aqui na zona, são esta vergonha… O povo não merece mais! 

D’Airinhas é uma estampa de rapariga. Andará pelos dezoito anos. Sorri para a mãe e repreende-a com doçura: 

--- Oh, mãe, lá vem a política outra vez! 

Maria enfrenta a filha com severidade: 

--- Maria d’Aires, a tua mãe sabe o que é a vida! Tu é que não sabes nem terás idade bastante para saber! Habitua-te a ouvir os mais velhos, os que já viveram muitos anos! As pessoas da minha idade e as mais velhas sabem muito bem como é esta dança dos políticos, sempre prometendo, sempre arranjando desculpas para não cumprirem o que prometem… São uns mentirosos! 

D’Airinhas abraça ternamente a mãe e sossega-a: 

--- As coisas irão melhorar. Vivemos em democracia. A revolução pôs um ponto final nos tempos negros da ditadura. 

Maria meneou a cabeça negativamente, com tristeza. 

--- Filha, a revolução foi um sonho. Essa coisa de o povo é quem mais ordena era boa de mais para ser verdade! Os cravos murcharam e secaram -- são uma saudade, nada mais. 



José-Augusto de Carvalho 
5 de Julho de 2005. 
Alentejo * Portugal 

terça-feira, 5 de março de 2019

13 - NA PALAVRA É QUE VOU... * A árvore


NA PALAVRA É QUE VOU…
.
A árvore 



Na minha adolescência, sobressaía um companheiro pela irreverência: “eu sou bom aluno, aprendo logo à primeira”. Recordando-o agora, assalta-me esta dúvida: talvez eu seja retardado, daí que tivesse de esperar dezena e meia de anos para finalmente perceber que Fernando Pessoa estava errado quando escreveu “tudo vale a pena quando a alma não é pequena”. Ou, sem me diminuir assim tanto, talvez eu tenha acreditado, enfrentando e afrontando as intempéries, que o tempo tudo conserta ou tudo concerta… vá lá eu saber!...
Decorridas dezena e meia de anos, verifico que o tempo nada consertou ou concertou. Agora, estarei onde o velho Sócrates “quis” que eu sempre estivesse quando proclamou “eu só sei que nada sei”.
Não me arrependo de ter dado tempo ao tempo… Só que eu não posso competir com o velho Cronos. Ele é perene, eu sou efémero. Ele aí está pujante, eu aqui estou gasto de anos e minguado de horizonte.
“Até ao lavar dos cestos é vindima”, diz a sabedoria popular neste meu chão de fome e de pão, de sede e de vinho, de mar e de voltar ou não. Ah, mas creio nos saberes ancestrais! E lavados os cestos que me couberam na labuta, dou por finda a minha participação na vindima. 
A realidade de mim foi o que foi. Não posso voltar atrás para corrigir seja o que seja e não tenho motivo ponderável para protestar agora. Tenho ou suponho ter consciência dos meus limites. E é com a mesma inteireza com que ontem aceitei o desafio que decido hoje optar pela gruta do eremita, no deserto do meu recolhimento. Levo comigo as verdades de sempre, para meu conforto. 
Ajudei a plantar a árvore… Benditos sejam os que se deliciarem comendo os saborosos frutos! 



4 de Março de 2019.
Alentejo * Portugal

quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

03 - LIVRO ESTALIRA DE MIM!....I * O Fado





O Fado






Cumprida a rotação,

marcava mais um dia o calendário.

E sempre este fadário

de versos na tristeza da canção. 



É noite, agora? Ou dia? Quem o sabe?

Dolentes guitarradas

gemem desesperadas

no tempo do silêncio que lhes cabe. 



A voz se solta rouca e chora o canto

fatal do sofrimento,

enquanto o xaile negro, em negro manto,

enluta o desespero do lamento. 



E assim, no desencontro da existência,

monótona se cumpre a rotação,

sofrida no fadário da cadência

que marca o calendário da canção. 




José-Augusto de Carvalho
6 de Março de 2009.
Viana * Évora * Portugal

sábado, 26 de janeiro de 2019

25 - LIVRO TEMPO DE SORTILÉGIO * O encontro



LIVRO TEMPO DE SORTILÉGIO

*

O encontro 



Este texto, agora terminado, corresponde a uma promessa incumprida 
que fiz a Lizete Abrahão, em Porto Alegre, na primavera de 2002. 
Que me valha o conforto de a Lizete ter lido grande parte dele. 




No silêncio, adormece o sossego. 

O deserto parece assombrado. 

O meu branco albornoz aconchego 

e caminho no tempo parado. 



É de pedras o solo que piso. 

Pedras soltas, dispersas, vadias… 

Uma sombra, e tão mal a diviso, 

me garante que não há vigias. 



Nem sinal de uma entrada na gruta. 

É enorme o lendário rochedo! 

Meu olhar, sob a noite, perscruta. 

Sinto o frio suado do medo. 



Frente a frente, o Passado e o Presente. 

Balbucio as palavras da senha 

e, ante mim, a surgir, de repente, 

a verdade que a lenda desenha. 



Devagar, passo a passo, franqueio 

o portal que se abriu por encanto. 

Circunvago o olhar, sem receio, 

e respiro um Passado de espanto. 



Das pegadas de Ali nem vestígio. 

Das riquezas da lenda nem rastro. 

Entre o ser e o não-ser, o litígio 

da firmeza do vento e do mastro. 



E contrárias as forças serão 

das firmezas do mastro e do vento, 

quando a vela se enfuna evasão 

e nas ondas se vai movimento? 



E se falo de mar, o Simbad, 

da penumbra do tempo lendário, 

vem velar, nos jardins de Bagdad, 

o estertor do ladrão sanguinário. 



Mas eu quero bem junto de mim, 

neste transe de angústia e de espera, 

a lanterna que foi de Aladim, 

inventando no caos a quimera. 



Lá do fundo da gruta, o ruído 

se aproxima de uns passos seguros… 

Não é sonho, é alguém decidido 

que regressa aos instantes futuros. 



Aproxima-se um velho de mim. 

Traz nas mãos a lanterna apagada. 

Reconheço o lendário Aladim 

no seu rosto de barba nevada. 



Com um gesto me manda sentar 

nas areias ocultas da gruta. 

Só um raio de níveo luar 

nos observa em silêncio de escuta. 



Quando o velho me fala, estremeço: 

--- Alá seja contigo, meu filho! 

Do Passado que sou reconheço, 

no Presente que fores, o trilho. 



Quando intento a resposta, num gesto 

me remete ao silêncio. Obedeço. 

E prossegue num claro requesto 

de uma angústia em que me reconheço: 





--- Na magia sem tempo da vida, 

são um só o Passado e o Presente. 

Somos ambos, na espera sofrida, 

o caminho de nós, livremente. 



O murmúrio do Tigre se expande 

pelas terras do Fértil Crescente. 

E não há quem o cale ou lhe mande 

suspender ou mudar a corrente. 



Nestas terras de sonhos e lendas, 

sob um céu polvilhado de estrelas, 

há milénios que erguemos as tendas 

na ilusão de senti-las e tê-las. 



Neste berço nasceu Abrahão, 

que foi pai de Ismael e de Isaque… 

Novas hordas de hodierna agressão 

nos flagelam em bárbaro ataque. 



É o Inferno de portas abertas. 

Jorra o sangue na fúria ululante, 

desenhando as auroras incertas 

neste céu cada vez mais distante. 



Talvez seja a sentença já vista 

do martírio em Sodoma e Gomorra: 

p’ra que a vida na graça persista 

é preciso que a mácula morra! 



Sem palavras, no tempo medito: 

no que fomos, no quanto sonhámos… 

E pergunto-me, incrédulo e aflito: 

onde foi que nós todos errámos? 



Aladim, em silêncio, se afasta. 

Lá vai ele, lanterna na mão. 

Só, na dúvida que me desgasta, 

sinto a dor que devasta o meu chão. 




José-Augusto de Carvalho 
Porto Alegre, Primavera de 2002 
Alentejo, Janeiro de 2019.

sábado, 19 de janeiro de 2019

25 - LIVRO TEMPO DE SORTILÉGIO * Memória do tempo parado



CANTO REVELADO 


Memória do tempo parado 




Para os Capitães que sonharam e continuam a sonhar Abril 





E tanto por dizer ficou estrangulado 

nas malhas do silêncio azul e da clausura! 

Do risco de falar ao de ficar calado, 

medrava em cada olhar o esgar duma censura. 



Era o tempo parado 

dos altares pagãos 

onde foi imolado 

por atávicas mãos 

o devir revelado. 



Difusa, em cada esquina, a sombra desenhava, 

na mancha que sangrava as pedras da calçada, 

o desvario insone e plúmbeo procurava 

a brisa que trazia a nova perfumada. 



Era o tempo parado 

dos desígnios fatais 

dum fantasma danado 

a negar os sinais 

do devir revelado. 



Ah, meu amigo, e tu, nos longes por haver, 

ainda do silêncio infausto tão distante, 

vivias, no mistério, a sedução de ser 

um astro mais do céu a lucilar errante. 



Era o tempo parado 

da vergonha de nós 

no estertor resignado 

e no medo sem voz, 

a render-se calado. 



Chegaste, agora, são e salvo, e o tempo é teu! 

Bem-vindo sejas! Vem, no tempo que em ti cresce, 

ser mais um cravo-Abril, que o dia amanheceu, 

e deixa-te orvalhar de auroras e floresce! 



José-Augusto de Carvalho 
19 de Maio de 2009.. 
Alentejo * Portugal

quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

13 - NA PALAVRA É QUE VOU.. * O regresso ao caos?


NA PALAVRA É QUE VOU… 


O regresso ao caos? 





A desvalorização ostensiva de tudo o que não nos afecta directamente, a indiferença pela amargura do outro, o umbigocentrismo de tantos e tantos, é uma mazela social purulenta que reclama tratamento imediato. 

O humanitarismo religioso e profano definha e estás prestes a agonizar. 

Viva eu! 

Viva eu e os outros que se danem! 

Ai de mim se não for eu! 

O objectivo é cada um de per si safar-se ou virar-se como puder? 

Será que cada um de nós vive numa ilha deserta? 

Será que cada um de nós não é parte de um contexto social onde há direitos e deveres indeclináveis? 

Será mesmo uma realidade consagrada que “a pimenta no ânus do outro é refresco para mim”? (Reconheço a grosseria desta “sabedoria” dita popular, mas a sua brutalidade é deveras ilustrativa e soa como um grito de alarme.) 

E chegámos aqui depois de séculos e séculos de doutrinação religiosa; depois de Humanismos e Iluminismos; depois da Liberdade, Fraternidade e Igualdade da Grande Revolução Burguesa de 1789, em França; depois de manifestos e mais manifestos; depois de Declarações de Direitos e Deveres, da ONU; depois de Constituições Políticas em vigor proclamando o Direito, a Justiça, a Defesa da Vida, a Concórdia e a Paz… e eu sei lá mais o quê! 

Os raros reconhecidos como salvadores do ser humano, da fauna e da flora, do planeta que é o nosso lar maior, disseram e demonstraram a justeza dos seus ensinamentos. E que lhes sucedeu? Foram perseguidos, foram presos, foram condenados, foram sacrificados com requintes de crueldade como se fossem perigosos malvados a abater sem piedade. O mandamento “Não matarás” é uma das muitas utopias… 

Afinal, o que somos? 

Afinal, o que queremos ser? 

Todos os dias, a todas as horas proclamamos uma única revelação --- a perdição. 

Herdámos a Esperança de um futuro melhor; nem a perdição deixaremos por herança porque nos apressamos a matar também os nossos herdeiros. 

Será o regresso ao caos. 

Não me considero um pessimista; também não sou seguramente um optimista delirante; mas com a lucidez que considero ter, o que vejo e ouço e leio deixa-me profundamente preocupado. Há um desnorte instalado. Os povos, aqui e ali cirurgicamente alienados, engrossam as levas de cordeiros para os matadouros, para os açougues. E recordando um dos cruelmente injustiçados, também me surpreendo muito mais com o silêncio dos justos do que com as vociferações dos vis e dos acéfalos. 

Já não tenho idade para ter medo, mas enquanto for vivo sentirei um profundo desgosto vendo ruir o sonho maior da instauração da dignidade da Vida. 

Termino com a transcrição da frase que li ou ouvi a uma actriz brasileira: “se o mundo é isto, parem o bonde, porque eu quero descer.” 



José-Augusto de Carvalho 
10 de Janeiro de 2019.
Alentejo * Portugal