terça-feira, 19 de março de 2019

13 - NA PALAVRA É QUE VOU... * Saudade


NA PALAVRA É QUE VOU...
.

S a u d a d e 



É um dia abrasador de Julho. O quintal ganha os contornos duma fornalha. Ao fundo, corre a rua empinada. São duas horas da tarde. Sonolenta, a vila estiraçada ao sol. Nem viv’alma. As cigarras cantam, ensurdecendo tudo e todos, esquecidas ou ignorantes da fábula. 

Maria sai da cozinha com um alguidar de roupa lavada. Com a destreza da experiência dos anos, começa a dependurá-la na corda que atravessa o quintal de topo a topo. Com este calor, daqui a nada estará seca, murmura de si para si. 

Soa a aldraba do portão que dá para a rua empinada. Maria grita lá vou… e vai abrir o portão. É a filha que chega de Évora, vem afogueada e protesta: 

--- Que calor, mãe! Passa dos quarenta graus! E a camioneta da carreira é uma frigideira! 

Maria encolhe os ombros resignada e corrobora o protesto: 

--- Este maldito verão é sempre assim, filha! O expresso para Lisboa tem ar condicionado, mas as carreiras, aqui na zona, são esta vergonha… O povo não merece mais! 

D’Airinhas é uma estampa de rapariga. Andará pelos dezoito anos. Sorri para a mãe e repreende-a com doçura: 

--- Oh, mãe, lá vem a política outra vez! 

Maria enfrenta a filha com severidade: 

--- Maria d’Aires, a tua mãe sabe o que é a vida! Tu é que não sabes nem terás idade bastante para saber! Habitua-te a ouvir os mais velhos, os que já viveram muitos anos! As pessoas da minha idade e as mais velhas sabem muito bem como é esta dança dos políticos, sempre prometendo, sempre arranjando desculpas para não cumprirem o que prometem… São uns mentirosos! 

D’Airinhas abraça ternamente a mãe e sossega-a: 

--- As coisas irão melhorar. Vivemos em democracia. A revolução pôs um ponto final nos tempos negros da ditadura. 

Maria meneou a cabeça negativamente, com tristeza. 

--- Filha, a revolução foi um sonho. Essa coisa de o povo é quem mais ordena era boa de mais para ser verdade! Os cravos murcharam e secaram -- são uma saudade, nada mais. 



José-Augusto de Carvalho 
5 de Julho de 2005. 
Alentejo * Portugal 

terça-feira, 5 de março de 2019

13 - NA PALAVRA É QUE VOU... * A árvore


NA PALAVRA É QUE VOU…
.
A árvore 



Na minha adolescência, sobressaía um companheiro pela irreverência: “eu sou bom aluno, aprendo logo à primeira”. Recordando-o agora, assalta-me esta dúvida: talvez eu seja retardado, daí que tivesse de esperar dezena e meia de anos para finalmente perceber que Fernando Pessoa estava errado quando escreveu “tudo vale a pena quando a alma não é pequena”. Ou, sem me diminuir assim tanto, talvez eu tenha acreditado, enfrentando e afrontando as intempéries, que o tempo tudo conserta ou tudo concerta… vá lá eu saber!...
Decorridas dezena e meia de anos, verifico que o tempo nada consertou ou concertou. Agora, estarei onde o velho Sócrates “quis” que eu sempre estivesse quando proclamou “eu só sei que nada sei”.
Não me arrependo de ter dado tempo ao tempo… Só que eu não posso competir com o velho Cronos. Ele é perene, eu sou efémero. Ele aí está pujante, eu aqui estou gasto de anos e minguado de horizonte.
“Até ao lavar dos cestos é vindima”, diz a sabedoria popular neste meu chão de fome e de pão, de sede e de vinho, de mar e de voltar ou não. Ah, mas creio nos saberes ancestrais! E lavados os cestos que me couberam na labuta, dou por finda a minha participação na vindima. 
A realidade de mim foi o que foi. Não posso voltar atrás para corrigir seja o que seja e não tenho motivo ponderável para protestar agora. Tenho ou suponho ter consciência dos meus limites. E é com a mesma inteireza com que ontem aceitei o desafio que decido hoje optar pela gruta do eremita, no deserto do meu recolhimento. Levo comigo as verdades de sempre, para meu conforto. 
Ajudei a plantar a árvore… Benditos sejam os que se deliciarem comendo os saborosos frutos! 



4 de Março de 2019.
Alentejo * Portugal