quarta-feira, 17 de agosto de 2022

16 - NA ESTRADA DE DAMASCO * Entre sombras



NA ESTRADA DE DAMASCO

*
Entre sombras





Foi banhar-se nas águas dos rios.

Quis lavadas as nódoas de sangue.

Quatro rios parados e frios

e um destino de sedes exangue.



Escondida entre as ervas daninhas

que irrompiam nas margens dos rios,

a serpente ensaiava escarninhas

armadilhas em outros ousios.



Do que fora o Jardim-Paraíso,

só da lenda a memória difusa,

extinguindo-se em traço impreciso.



Tudo o mais que se afirma e recusa

não mais é que travesso sorriso

a tentar-nos nos lábios da musa.




José-Augusto de Carvalho

Alentejo, 16 de Agosto de 2022.

10 - CANTO REVELADO * Dos aedos



Canto Revelado
*
Dos aedos




Os aedos cantaram as novas,

palmilhando caminhos plurais.

Eram novas vestidas de trovas,

de rimances e de madrigais.



Nos lugares do reino, perdidos

entre vales e extensas planuras,

luminárias e círios ardidos

nos vestígios do tempo às escuras.



Eram simples os versos rimados,

no rigor das formais redondilhas,

sublimando, nos antepassados,

o Princípio a florir maravilhas.



Nos azuis sem portais do interdito,

os cativos do chão que pisamos,

mais além, a verdade no mito,

revelada no Céu que voamos.



José-Augusto de Carvalho

Alentejo, 14 de Agosto de 2022.

sábado, 13 de agosto de 2022

15 - CANTO REBELADO * Na voragem



CANTO REBELADO

.

Na voragem




Chegaram em tropel os cavaleiros.

Empunham lanças, erguem estandartes.

De Torquemada ingénitos herdeiros

de imolações, mordaças e outras artes

do opróbrio dos carrascos justiceiros.

.

Trombetas galvanizam os vassalos.

Agita-se convulsa a humana massa.

Nervosos e fogosos os cavalos,

de condição corcéis de pura raça,

só a bridão conseguem refreá-los.

.

O povo-servo observa boquiaberto,

nostálgico das mortas primaveras.

Os velhos olham o presente incerto

no insólito aparato de outras eras,

como quem lê um livro há muito aberto.

.

Exaustos e arrimados aos cajados,

que as forças já em pé mal os sustentam,

prevêem, nos espaços enublados,

as fúrias que implacáveis se concentram

no apocalipse dos homiziados.

.

Na Torre de Menagem aparece

o títere amestrado e fala às massas.

No Céu de chumbo, o dia que escurece

no trágico prenúncio de desgraças...

...e eu balbucio a derradeira prece.

.

José-Augusto de Carvalho

Alentejo, 13 de Agosto de 2022.

sexta-feira, 15 de julho de 2022

16 - NA ESTRADA DE DAMASCO * As estrelas apagadas

 



NA ESTRADA DE DAMASCO

*

As estrelas apagadas





Tantos anos depois, me interrogo:
Que desígnio fatal nos maldisse?
Nem de Deus, o supremo a quem rogo,
um sinal que eu ouvisse ou que eu visse.


Primaveras, estios, outonos
ou invernos sucedem-se iguais:
em catarses, morrendo abandonos;
em ousios, inépcias demais.


De naufrágios e de perdições
falam fartas as folhas volantes.
Vagalumes sonhando-se estrelas,
no silêncio sem luz nem pregões,
alumiam uns pés claudicantes
que se arrastam tentando acendê-las.




José-Augusto de Carvalho
Alentejo, 14 de Julho de 2022.

terça-feira, 12 de julho de 2022

16 - NA ESTRADA DE DAMASCO * In extremis



NA ESTRADA DE DAMASCO
*
In extremis





De sobressalto em sobressalto, aqui cheguei.
Foi quando, morto de exaustão, adormeci.
Depois, aos poucos, entrevi a Tua Lei
e a graça dada, confortado, agradeci.


Nos quatro rios do teu Éden mergulhei.
Nas mansas águas cristalinas, percebi
quantas vorazes tentações em mim lavei
para sentir-me, aqui, mais próximo de Ti!...


Tentei usar o livre arbítrio que me deste,
sem infringir a rectidão da Tua Lei,
na comunhão do verbo e sacros mandamentos.


Sem culpa nem pecado, a lama que em mim reste
lavada seja no mar morto onde salguei
o fel que insiste em perdurar no uivar dos ventos...



José-Augusto de Carvalho
Lisboa, 11 de Julho de 2022.

terça-feira, 21 de junho de 2022

03 - ESTA LIRA DE MIM!... * As pétalas

 



ESTA LIRA DE MIM!...
*
As pétalas



Estou envelhecendo! Onde terei guardado
as ressequidas pétalas do amor-perfeito?
Talvez, perdidas, durmam no esquecido leito
das folhas de um antigo livro abandonado...
 

Tantas estantes! Tento, em vão, localizá-las.
Oh, meu perdido amor-perfeito, onde te escondes?
Que mágoa guardas tu de mim que não respondes?
Por que tu não me vês? E por que tu te calas?


A noite não tem sono e dá-se companhia.
A nossa insónia vela os justos que repousam.
E que aparente paz se evola das paredes!


Ausentes, somos, a varar, na areia fria,
as naus que já não são e logo já não ousam
ir saciar o ardor de insuportáveis sedes...



José-Augusto de Carvalho
Alentejo, Junho de 2022,

quinta-feira, 9 de junho de 2022

16 - NA ESTRADA DE DAMASCO * Blasfémia?

 



NA ESTRADA DE DAMASCO


Blasfémia?




Da sarça ardente, trouxe-nos Moisés,

no verbo que perdura, a Tua Lei.

Ficámos todos a saber Quem és.

Quem somos? que seremos? Eu não sei.



Avanços e recuos, já conheço.

E temos que nos bastem ladainhas.

De lutos no direito e no avesso,

um bando delirante de andorinhas.



No cume da pirâmide tremula

ao vento do quadrante há muito imposto

a tutelante flâmula da gula,

difusa, sem entranhas e sem rosto.



Falastes com Moisés da sarça ardida,

morreu sem ver a Terra Prometida...




Alentejo, 9 de Junho de 2022.

16 - NA ESTRADA DE DAMASCO * Blasfémia?



NA ESTRADA DE DAMASCO
*
Blasfémia?



Da sementeira do sonho
à safra do pesadelo...
E que primícias deponho
agora no Teu altar
se labor e se desvelo
tiveram tao mal medrar?

Senhor, que campo daninho
reservaste para mim?
Ou me deste por caminho
a aridez deste chão
para eu sofrer com Caim
a mesma condenação?

Mas de que culpas me acusas
e severo me condenas?
De que justeza Tu usas?
Foi este o chão que me deste...
Que culpa tenho p'ra penas,
Senhor, que este chão não preste?


Alentejo, 9 de Junho de 2022.

domingo, 5 de junho de 2022

03 - ESTA LIRA DE MIM!... * As ruínas



ESTA LIRA DE MIM!...

*
As ruínas




Parado, vejo o Temp(l)o nas ruínas...
Que nada mais restou do que ruínas.

Incólume, um degrau me desafia
aos êxtases do sonho prometido,
como se houvesse ainda a escadaria
de acesso ao paraíso destruído...

Num instintivo gesto de defesa,
desvio o meu olhar da tentação.
E rumo aos horizontes de incerteza,
que há muito herdei do meu amado chão.

Sem forças p´ra lutar, que congeminas,
agora, quando tudo está perdido?
Restaram-te os assombros das ruínas...
E o que restou, agora, faz sentido!



José-Augusto de Carvalho
Alentejo, 6 de Junho de 2022.






sexta-feira, 3 de junho de 2022

09 - Livro CANTAREMOS * Revelação




Tu foste o princípio de luz.

De perfume e cor, num sagrado altar.

És a minha cruz,

onde vai rezar

o meu coração

fervorosa oração.

Sedutora flor do Jardim,

mulher ou poema, sonho encantador,

se em verdade existes e humana me tentas,

deixa-me pecar, amor!



José-Augusto de Carvalho

Alentejo, 1 e 2 de Julho de 2021.

09 - Livro CANTAREMOS * Menina e moça



 


Já morreram de desgosto as Primaveras.

Na corrente que é de pranto, do Xarrama,

foi levado para o mar, que longe chama,

o já morto rouxinol que Amor quisera.


Ai, saudades tantas da Menina e Moça!

Por que assim abandonaste o amado ninho

p´ra sonhares os enleios de arminho

e ousadias que nem Eros veja ou ouça?


São angústias idas, num sussurro instante,

as memórias que estas horas emolduram...

Soluçadas, as  saudades amarguram...

Foi perdido o rouxinol que as ame e cante.



José-Augusto de Carvalho

Lisboa, Junho de 2021.

09 - Livro CANTAREMOS * Sonho de Natal de uma menina

 



Neste noite de Natal e de magia,

coloquei na chaminé o sapatinho.

Já dormindo, vi Jesus e o que trazia:

a boneca que eu pedira, num carrinho.


Acordei sobressaltada e fui correndo...

E lá vi, na chaminé, o que sonhara:

a boneca no carrinho, agora lendo,

o pedido que ontem à noite eu lá deixara!


E chorei de gratidão, que bem me lembro!

Meu Jesus, a minha vida determina:

eterniza este Natal, este Dezembro,

e que eu fique, sem crescer, sempre menina!


José-Augusto de Carvalho

Lisboa, Dezembro de 2021.

09 - Livro CANTAREMOS * Paisagem

 



Inocente e descuidado, o ribeirinho

vai correndo na planura sossegada.

Ensonado, põe-se o sol, devagarinho;

vai dormir mais uma noite descansada.


As estrelas, já no céu a lucilar,

outras olham divertidas a correr...

Rouxinóis e serenatas de encantar

trazem sonhos só de amor a florescer.


Rompe agora a madrugada; e a cotovia,

já traquinas, vem o dia anunciar.

Só não pára o ribeirinho a correria,

p'ra chegar até à praia e ver o mar!...


José-Augusto de Carvalho

Lisboa, Dezembro de 2021