domingo, 30 de junho de 2019

03 - LIVRO ESTA LIRA DE MIM!... * Vento suão



Vento suão 






Vem o vento suão da fornalha de Hefesto, 

na Mãe África. Traz um rubor de artifícios 

e uma mescla de anéis de ancestrais malefícios 

que a bigorna forjou num desígnio funesto. 



Traz os gritos que a dor arrancou da raiz 

e morreram no mar do perpétuo desterro… 

Traz a cruz que de novo agoniza no cerro 

e calada, no horror sem perdão, tudo diz… 



Traz o medo do incréu num juízo final, 

onde o ser e o não-ser se debatem convulsos… 

Traz o verbo na luz sem grilhetas nos pulsos 

e a partilha do pão num sagrado ritual… 



E eu aqui neste chão que foi berço e regaço 

esperando por mim para o último abraço. 





José-Augusto de Carvalho 
29 de Junho de 2019. 
Alentejo * Portugal

sexta-feira, 21 de junho de 2019

03 - LIVRO ESTA LIRA DE MIM!... * Traço de união


Traço de união 





Escavo os subterrâneos da ausência 

em busca de vestígios e de escombros 

que jazem nos covais da decadência, 

ornados de mistérios e de assombros… 



Ossadas que me dizem ser o nada 

que resta do que foi vivido outrora… 

Memória sem memória, abandonada, 

e que nenhuma lágrima hoje chora… 



Escavo e não encontro nem um grito, 

um eco de algum ai aqui que diga 

eu sou de ti, ainda que proscrito, 

a génese perdida, a mais antiga… 



E não me deves nada, nem a prece 

que no recolhimento se murmura… 

Em ti, apenas, sou quem permanece, 

quem vai contigo, quem contigo dura… 



Agora que de mim não há mais nada, 

pára de procurar --- já tudo viste. 

E cumpre-te semente germinada, 

que tudo o que já foi em ti existe… 



Atónito, descubro que Sibila 

me trouxe a mítica revelação: 

que nem a morte que nos aniquila, 

destrói o nosso traço de união. 




José-Augusto de Carvalho 
19 de Junho de 2019. 
Alentejo * Portugal

domingo, 16 de junho de 2019

28 - CLAVE DE SUL * Companheiro


(CLAVE DE SUL)

*
Companheiro… 





(À memória de Joaquim Soeiro Pereira Gomes)




Tu sabias, 

sabias desde o berço, 

que o pátrio chão está por resgatar… 



Tu sabias, 

sabias da pertença 

da futura seara por ceifar… 



Tu sabias, 

sabias por que a fome 

maior é sempre a fome da esperança… 



Tua sabias, 

sabias que tão pouco iam durar 

teus tempos de criança… 



Tu sabias, 

sabias que eras mais um entre os tantos 

privados do seu tempo de meninos… 



Tu sabias, 

sabias como eu sei que vamos juntos 

contra as vivas marés dos desatinos… 



Tu sabias, 

sabias, como eu sei, 

que a gente cai e a gente se levanta… 



Tu sabias 

e sabes, como eu sei, 

que o canto da sereia não nos perde, 

não nos seduz, 

não nos encanta…. 




José-Augusto de Carvalho 
15 de Junho de 2019 
Alentejo * Portugal

terça-feira, 4 de junho de 2019

16 - NA ESTRADA DE DAMASCO * Assumpto


NA ESTRADA DE DAMASCO
.
Assumpto





Carrego, desde a queda, a maldição de expulso.

Do mito que não fui à pena de banido, 

a minha condição assumo em cada impulso 

de ousar o desafio e dar-me algum sentido. 




Os passos que já dei! Memória das estradas 

de um tempo em construção. Derramo o sangue rubro 

na aras das manhãs de angústias orvalhadas 

onde sem medo sou e vivo me descubro. 




E cada descoberta é uma porta aberta… 

E, em cada porta aberta, o mesmo desafio 

dizendo-me que sou assim desde o começo… 




Imensa, a dimensão do todo me liberta. 

Do círio ardendo sou telúrico o pavio 

onde sem mito nem grilhão me reconheço. 





José-Augusto de Carvalho 
4 de Junho de 2019. 
Alentejo * Portugal