quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

13 - NA PALAVRA É QUE VOU..., * O velho, o rapaz e a Vida


(NA PALAVRA É QUE VOU…)

*
O velho, o rapaz e a Vida


--- Quem desaparece, esquece!

José das Águias levantou os olhos do jornal e olhou interrogativamente o jovem.

--- Estou errado, Ti’Zé?

José das Águias, suspirando:

--- Ignorar é pior, rapaz! Ignorar é matar!

O jovem olhou o ancião apreensivamente e quis saber:

---Ti’Zé, qual a diferença, diga-me!

José das Águias abandonou o jornal e respondeu:

---Meu rapaz, muitos desaparecem, é um modo de dizer; é quando a Vida os chama para outros lados. Às vezes, regressam; outras vezes, não.

---A Vida, Ti’Zé? Que Vida?, quis saber o jovem.

---Ora, ora, meu rapaz, a Vida é tudo o que nos leva a fazer ou não fazer isto ou aquilo. A nossa vida mesmo e a Vida como realidade que temos. 

--- A vida como realidade que temos? --- repetiu o jovem como um eco. 

--- Não estou entendendo, Ti’Zé.

O ancião, esboçando um sorriso triste:

--- Um dia, nascemos. Este mistério da existência não sei se já está devidamente explicado por quem sabe. Aqui, acontece a nossa vida, a vida de cada um. E entramos na vida colectiva. A vida colectiva é o modo como todos estamos organizados. Cada um de nós tem o seu lugar na engrenagem. Uns fazem isto, outros fazem aquilo. E o resultado destes fazeres serve ou deve servir todos. 

O jovem escutava atentamente Ti’Zé das Águias.

O ancião continuou:

--- Quando uns partem, é sinal, quase sempre, de que as coisas não vão bem. Quem busca noutras paragens o que não encontra no torrão natal quer dizer que o país não cumpre o seu dever de dar satisfação a todos.

--- E tal sucede por que razão, Ti’Zé? --- quis saber o rapaz.

--- Tal sucede por haver dificuldades naturais ou porque quem manda, manda mal. Meu amigo, eu já vivi muito, já sofri muito. Estou cansado e prestes a dizer adeus a todos. Aqui nasci, aqui cresci, aqui aprendi com meu pai os trabalhos do campo. Aos vinte e poucos anos conheci, na Flandres, o outro lado da Vida --- a desgraça da guerra. Sabes o que é a guerra? A guerra é o Inferno, é o lugar onde os homens matam para não morrerem. E porquê? Por que motivo os homens se matam? Nem sabem. Os que governam mandam-nos matar e nós matamos outros homens que estão do outro lado com a intenção de matar-nos. Entendes isto? Ninguém entende a não ser os poderosos que ambicionam tirar ou tiram mesmo benefício da matança.

José das Águias calou-se. Estava visivelmente acabrunhado.

O rapaz, pensativo, olhava a lonjura da planície através da janela aberta da venda do Jerónimo.

Decorridos alguns minutos de silêncio, Jerónimo pediu:

--- Ti’Zé, conte ao rapaz aquela conversa que teve com o médico quando ficou ferido lá na Flandres, lembra-se?

José das Águias olhou o amigo e suspirou:

--- Ah, Jerónimo, ao tempo que isso foi! E sempre o que o médico me disse me acompanha... Vamos lá, então: enquanto me tratava, o médico perguntou-me se eu sabia por que estava na frente, a combater os alemães. Eu não sabia bem o motivo e disse que tinha sido mobilizado para a guerra. Aí ele me disse que eu era carne para canhão e que todas estas coisas sucediam desde que um homem, não sei onde nem quando, vedou um grande terreno e avisou todos os outros: «Este terreno é meu».

--- Isso mesmo, Ti’Zé! Essa dá que pensar! --- exclamou Jerónimo.

O rapaz estava confuso e pediu que Ti’Zé explicasse a história do terreno.

--- Meu rapaz, o médico dizia que naquele tempo as terras eram de todos, não era como é agora que uns poucos têm herdades e mais herdades e outros nem um quintal têm. E por via disso, vivem no bem-bom, enquanto nós nem sabemos o que nos reserva o dia de amanhã.

Jerónimo atalhou:

--- Diga mais, Ti’Zé!

--- O ancião meneou a cabeça e advertiu:

--- Estas coisas têm de ser entendidas. Vivemos tempos difíceis também para a palavra. Quem manda tem isto na mão e quem sustem o Poder são estes mesmos donos das terras e outros poderosos. O médico tinha razão: quem tem oprime quem não tem! Eu já não verei, porque estou com os pés para cova, mas os novos terão de dar uma volta séria a esta desgraça.

O rapaz quis saber:

--- E como se dá essa volta a isto?

--- O povo tem de unir-se, tirar esta gente que manda e pôr lá outra gente. Gente que sabe o que é penar e que por isso mesmo tem de distribuir por todos, na mesma e justa medida, os deveres e os direitos. Enquanto isto não acontecer, a desgraça que vivemos irá continuar, sempre!

--- Sempre!, exclamou o rapaz.

José das Águias continuou:

--- Depois da I Grande Guerra, vivemos tempos danados, com muito luto e muita miséria. E também com muita inquietação nos meios políticos e militares. Depois, veio o 28 de Maio de 1926 e a Ditadura Militar; depois veio o Estado Novo e para ficar até hoje; depois veio a tragédia que foi a dita Guerra Civil de Espanha; depois veio o horror da II Guerra Mundial; agora vivemos a Guerra de África… Quando será que se cumpre a fraternidade e o respeito pela vida e pela dignidade da vida?

A interrogação de José das Águias pairava como um pesadelo. Só o tilintar dos copos que Jerónimo lavava conseguia quebrar o silêncio pesado.

Lá fora, a planície assistia melancolicamente ao êxodo dos deserdados, “a salto”…


José-Augusto de Carvalho
Alentejo, 11 de Janeiro de 2018.

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