quinta-feira, 6 de julho de 2017

29 - ACÇÃO LITERÁRIA E CÍVICA * Prefácio para obra de Sandra Nóbrega


Sandra Nóbrega é a extremosa mãe de minha sobrinha-neta Núria e do adolescente Tiago. Os imperativos da Vida nunca nos permitiram uma convivência regular. Talvez por isso, fui surpreendido pela notícia do livro e mais ainda pelo convite para eu o prefaciar.

Escrevi algures: «(…) sou um cidadão versado em coisa nenhuma. O que sei, aprendi-o nas encruzilhadas da vida, comendo, aqui e ali, o pão que o diabo amassou. Não tenho, pois, quaisquer títulos académicos que me autorizem a falar de cátedra. Falarei, portanto, do rés-do-chão da vida.»

Aqui, entre montados e olivedos, no desencontro de uma terra de muito joio e pouco pão, recebi e li os “Pedaços d’Alma”. É um livro que revela uma mulher firme e determinada.

Ora bem, falando do livro, o primeiro livro da Sandra, que releva, sem ambiguidades, a sua relação consigo mesma e com os outros, começarei por dizer que não será casual a arrumação de dois textos --- respectivamente, o primeiro e o último da colectânea --- “Saudade” e “Porque é impossível esquecer-te, João Rui”. Em “Saudade”, a perda irremediável de sua mãe é racionalmente aceite e dulcificada por uma presença-relação que anseia projectar-se num infinito perene e estelar. E em “Porque é impossível esquecer-te, João Rui”, na perda também irremediável, é a demora presumivelmente fatal de assistência e a morte prematura que são dolorosamente verberadas, numa recusa indignada.

Imediatamente a seguir, encontro os textos “Ser Professor” e “Educação”, dois momentos de evidente exaltação da actividade docente que escolheu por vocação e paixão.

A autora, num momento de fraqueza, de humana fraqueza, em “Cruel e desigual” chora doridamente a perda da mãe. “Sem ti não há bonança e eu sinto que perdi o norte” é um momento tão doído que não consente qualquer assomo de firmeza ou determinação. É a dor que tudo esmaga, numa violência crudelíssima.

Em “Descompasso da Vida” encontro a condição de mãe até à dor suprema --- a perda do filho, que a autora tão bem define assim: “Fim da linha / irreversível / e uma parte de mim morre também.”

“Lado errante” é a utopia do eu livremente casado com a Natureza, num regresso à condição humana parte indissolúvel da Natureza, sem dogmas e sem peias que a ordem gregária viria a determinar como sociedade estabelecida.

“Madrugada de silêncios” é o eu sentindo o tudo que o circunda e envolve como um mundo exterior de que se liberta para plenamente trilhar o seu mundo interior, de “caminhos sinuosos”, aqui no reconhecimento da complexidade do ser-estar-sentir que determina cada ser humano, tamanha que ele mesmo a não apreende em toda a sua extensão.

“Simplesmente mulher” é um texto datado. A autora exalta a mulher: “Em cada mulher existe um tesouro imenso por descobrir.” E desta asserção parte para a condenação de todas as subalternidades, dependências e vilanias a que a mulher foi (e é) sujeita pela sociedade patriarcal, através de séculos. E permito-me recuar à minha distante juventude para recordar a perplexa interrogação que então eu fazia: como é possível tal degradação quando é a mulher-mãe que educa as crianças e nelas inculca os primeiros valores? Evidentemente, mais tarde, apercebi-me de que a questão não era tão simples assim…

Em “Outro dia”, o fascínio do mar parece confirmar, talvez sem que a autora de tal se aperceba, a teoria de que toda a vida terá provindo do mar. O mar na grandeza da sua dimensão, na contemplação, na calmaria e na procela, na libertação, na angústia do desafio, nas sereias do encantamento e da perdição.

Nos demais textos, com exclusão do último, a temática é o amor pelo outro. Sobressai o lirismo típico que prende, que nos encanta e nos perturba desde que a Poesia determinou a sua sublimação. Um poema de amor é sempre um encantamento, maior ou menor, dependendo naturalmente da virtuosidade verbal, mas sempre um encantamento. E não me parece oportuno tecer outras considerações sobre este encantamento. Bem avisados andaram os autores que nos legaram as mais portentosas histórias de amor quando, ultrapassadas todas as dificuldades, sempre concluíram: “E foram felizes para sempre!”

E eu, do rés-do-chão da vida, da antiga Viana de Foxem, hoje redundantemente do Alentejo, concluo recomendando a leitura de “Pedaços d’Alma”.

José-Augusto de Carvalho
Abril de 2009.

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