sábado, 10 de dezembro de 2016
13 - NA PALAVRA É QUE VOU... * A detenção do maltês
Este é o relato.
O maltês, que sempre vinha à feira, ano após ano, deambulava por entre as pessoas, gritando:
Quem muito dorme pouco aprende! Acordem!
Indiferentes, as pessoas fingiam não o ouvir. Uma ou outra murmurava:
É doido, para que lhe havia de dar!
O maltês não se dirigia directamente a ninguém. Se alguém o olhava com curiosidade ou como que mudamente o interpelava, não desviava o olhar nem parava e gritava:
Acordem!
Um dos membros da patrulha da Guarda Nacional Republicana aproximou-se dele e quis saber o motivo da exortação do maltês:
--- Então que se passa?
--- Esta gente parece não sentir como elas lhe mordem, senhor guarda.
--- Ah, sim?!, ironizou o agente da Autoridade.
--- É como lhe digo, confirmou o maltês.
O guarda olhou interrogativamente o camarada da patrulha:
Que fazer? Aquilo seria perturbação da ordem pública?
O outro guarda opinou:
--- É melhor levarmos o gajo ao comandante, assim ficamos a salvo de qualquer encrenca.
E lá foram, o maltês ladeado pelos guardas, rumo à vila. As pessoas olharam silenciosamente enquanto se afastavam, abrindo alas. As mais novas manifestavam uma curiosidade contida; as mais velhas, uma preocupação apenas perceptível num baixar de olhos ou num reprovador menear de cabeça.
Chegados ao Posto local da GNR, apresentaram-se ao comandante, um 1º. Cabo. Os soldados relataram a conduta do maltês e o motivo da sua detenção.
O comandante concordou com um movimento afirmativo de cabeça e fixou o olhar no detido. Depois, perguntou:
--- O detido ofereceu resistência?
--- Não, senhor! , responderam os guardas, ao mesmo tempo.
--- Na feira, as pessoas sentiram-se incomodadas com a conduta do detido?
--- Não, senhor! , de novo responderam em uníssono os guardas.
O comandante parecia meditar enquanto olhava o maltês. Seguidamente, disse:
--- Bem, vamos ao interrogatório…
Um dos guardas sentou-se à secretária para elaborar o auto e o outro saiu da sala.
--- Como te chamas?, perguntou o comandante ao maltês.
--- António Almas.
--- Qual é a tua profissão?
--- Trabalhador.
--- Isso somos todos, resmungou comandante. --- Trabalhador de quê? O que fazes na vida?
--- Trabalhador do campo, precisou o maltês.
--- És natural de onde? Isto é, onde nasceste?
--- Não sei ao certo, sei que foi num monte, perto do Odiana, era o que dizia a minha mãe.
--- Sabes ler?
--- Não sei, nunca fui à escola.
--- És casado? Tens filhos?
--- Tive mulher. Morreu ela e a criança ao nascer.
--- Que vieste fazer à feira?
--- Acordar quem dorme?
--- Ah, sim?, estranhou o cabo da guarda.
--- Sim, senhor, quem muito dorme pouco aprende! , sentenciou o maltês.
--- Que queres tu dizer com isso?, perguntou o cabo da guarda enquanto lançava um olhar cúmplice ao guarda que registava a interrogatório.
--- Quero dizer o que disse, mais nada: quem muito dorme pouco aprende.
--- E onde aprendeste tu isso?, quis saber o cabo da guarda.
O maltês encolheu os ombros.
O cabo da guarda não gostou do encolher de ombros e gritou:
--- Responde ao que perguntei!
Muito sereno, o maltês respondeu:
--- Toda gente sabe isto. Já minha mãe me dizia isso: filho, não fiques dormindo a sesta! Não sejas malandro! Vai procurar trabalho para ganhares para as sopas! Olha que quem muito dorme pouco aprende!
--- Isso é política!, voltou o cabo da guarda a gritar.
--- Isso eu já não sei, disse suavemente o maltês.
Desconcertado, o cabo da guarda olhou o maltês. Seria aquele homem um pobre diabo ou um finório? E recordava a recomendação superior: na dúvida, arrecada-se.
--- Acabou o interrogatório, decidiu. --- Ficas detido e amanhã de manhã segues para a cidade. Lá, o Comando Distrital tratará de ti.
José-Augusto de Carvalho
Alentejo, Novembro de 2016.
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